quarta-feira, outubro 9, 2024
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Até quando os americanos fazem a janta e os europeus lavam os pratos?

Com a guerra da Ucrânia, será que os europeus vão continuar em Vênus? E será que os americanos vão continuar em Marte?

Pois é. Roubo essas metáforas a Robert Kagan, provavelmente o autor que mais tenho revisitado desde 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia em larga escala.

Quando o li pela primeira vez, em inícios do século 21, apreciei a inteligência, mas não seu profetismo. Vivíamos os tempos do “fim da história” —e, mesmo com os ataques terroristas do 11 de Setembro, ninguém queria abandonar o resort.

Hoje, com três conflitos regionais que ameaçam transformar-se numa confrontação global —Israel e Irã no Oriente Médio; China e Taiwan na Ásia; Ucrânia e Rússia na Europa— não é possível reler Kagan sem reconhecer que ele viu longe.

A referência a Marte e Vênus está no seu ensaio “Do Paraíso e do Poder: América e Europa na nova ordem mundial”, publicado no Brasil pela Rocco.

Tese de Kagan: a Europa e os Estados Unidos, apesar de aliados, não vivem no mesmo mundo. Em questões de poder —sua eficácia, moralidade e necessidade— a Europa habitava um paraíso pós-histórico, kantiano, onde a lei internacional e a diplomacia eram prioritários. A Europa habitava Vênus.

Não os Estados Unidos. O mundo continuava sendo o que sempre foi: um lugar caótico, violento, tipicamente hobbesiano, onde as boas intenções não sobrevivem aos piores agentes —e o uso da força é imprescindível. Os Estados Unidos habitam Marte.

E como explicar a diferença?

Não por uma questão de “caráter” nacional – você sabe, aqueles clichês sobre os americanos como seres rudes e violentos, habituados ao Faroeste e sempre prontos a sacar de uma arma.

A questão é histórica: a Europa já viveu em Marte —e os Estados Unidos, na sua fundação, estavam firmemente em Vênus. Mas houve uma troca de lugares com a Primeira Guerra Mundial e, sobretudo, com a Segunda.

A destruição que as guerras trouxeram aos europeus, e os crimes cometidos no velho continente, os fizeram recuar para os confortos de Vênus.

Como escreve Kagan, a Europa fez a sua transição para um mundo pós-moderno, onde o uso da força se tornou tabu e a geopolítica foi reduzida a relações comerciais e sinalizações de virtude.

O problema, porém, é que a Europa só fez essa transição porque os Estados Unidos não a fizeram. Pelo contrário, os gringos garantiram a segurança da Europa no contexto da Guerra Fria e depois do seu fim.

E mesmo quando foi necessário aos europeus atuar militarmente na vizinhança —lembrar as guerras da ex-Iugoslávia— teve de ser Washington, não Paris ou Berlim, a fazer o trabalho pesado. “Os americanos fazem a janta e os europeus lavam os pratos”, relembra Kagan. Uma posição confortável?

Seguramente que sim. E se é verdade que a unipolaridade americana tem seus perigos —”para quem só sabe usar um martelo, todos os problemas parecem pregos”, reconhece Kagan—, também é verdade que a dependência militar europeia face aos Estados Unidos tem seu preço. “Para quem não tem um martelo, nenhum problema parece um prego.”

A invasão russa da Ucrânia abalou a Europa como nenhum outro conflito desde a Segunda Guerra Mundial. Mas o verdadeiro terremoto vem a caminho, com uma eventual vitória de Donald Trump nas eleições desse ano. O mais recente pacote de ajuda militar à Ucrânia, no valor de US$ 60,8 bilhões, pode ter sido o último.

Para usarmos uma vez mais as metáforas de Robert Kagan, o que será da Europa quando os Estados Unidos resolverem recuar para Vênus? Estarão os estadistas europeus e as suas sociedades psicologicamente preparadas para revisitar Marte?

Essas são as perguntas que vão definir o futuro da Europa.


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