terça-feira, outubro 8, 2024
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Haroldo Ceravolo Sereza: a Amazon já foi uma livraria feminista – Opera Mundi – Opera Mundi

Perdoem pelo texto cheio de datas. É que estamos discutindo com Elio Gaspari, jornalista que tem uma conhecida obra de viés histórico. E, como sabemos, para a história, as datas não dizem tudo, mas importam muito.
Em 1970, foi fundada a primeira livraria assumidamente feminista dos Estados Unidos, em Minneapolis no estado do Minnesota. Depois dela, surgiram muitas outras dedicadas a autoras mulheres e ao pensamento feminista, primeiro nos Estados Unidos, depois ao redor do mundo. Se hoje celebramos o feminismo, devemos reconhecer o papel mobilizador das livrarias na discussão e difusão dessas ideias.
Esta livraria de Minneapolis não existe mais. Mas ela tinha um nome: chamava-se Amazon. A Amazon feminista processou e saiu vitoriosa na Justiça quando seu nome foi usurpado. A indenização, da ordem de poucas centenas de milhares de dólares, não fez cócegas no valor da empresa de Jeff Bezzos.
Em 1981, a França instituiu uma nova lei, chamada de Lei Lang. Defendida por editores e livrarias independentes, ela tinha um alvo: o crescimento de redes de livrarias na França, que ameaçava os pequenos negócios. Foi uma lei na contramão neoliberal que tomava a União Europeia, limitando os descontos de livros nos dois primeiros anos depois do lançamento.
A FNAC lutou bravamente contra ela. Perdeu a disputa política, embora a lei não a tenha impedido de crescer. Tornou-se uma rede de livrarias mundial e a França conseguiu garantir que cada comuna, por menor que fosse, tivesse ao menos uma livraria. O Reino Unido liberou geral o preço dos livros, e o resultado é que há menos livrarias por habitante na Inglaterra hoje do que na França, e além disso o livro ficou proporcionalmente mais caro do que na França.
Apenas em julho de 1994 Jeff Bezzos fundou a Amazon. Coincidentemente, é na época que o Brasil lança o Plano Real, que estabiliza os preços. A estabilização traz duas coisas importantes para o mercado do livro brasileiro: a vinda de empresas estrangeiras, entre as quais a FNAC, que chega a São Paulo em 1998, e a discussão de como lidar com a política agressiva de negociação da empresa com os editores e distribuidores – ou seja, sobre a necessidade de uma lei como a francesa no Brasil. Nessa época, quem chegasse à livraria Cultura e pedisse um desconto era recebido por um time de vendedores que não sabia o que fazer: foi assim que eu comprei o Teatro Completo de Nelson Rodrigues, creio que com dez por cento de desconto, que vieram mais pela simpatia do gerente com alguém que tinha cara de duro do que de uma política de marketing.
A Amazon chegou ao Brasil em 2012, quando a crise de Saraiva e Cultura já estava desenhada. Saraiva e Cultura emulavam a política da FNAC, eram contra qualquer discussão sobre o tema, com argumentos liberalizantes. Com a chegada da Amazon, mudaram de opinião, mas sucumbiram, como já se esperava. Não foi a chegada da Amazon que as afundou, há várias outras explicações para isso, como a má gestão, a priorização do lucro dos acionistas e a redução do tamanho do mercado editorial.
Em 2018, o governo Temer, que tinha na área de Cultura muitos nomes ligados à cadeia produtiva do livro, tentou implementar a lei do Preço Comum, também chamada de Lei Cortez. Elio Gaspari escreveu uma coluna dizendo que essa era uma invenção contra a Amazon para ajudar Saraiva e Cultura.
Agora, em 2024, quando a lei avança no Senado, Gaspari volta a dizer que a lei nasceu para se contrapor a eficiência da Amazon de Jeff Bezzos. Saraiva e Cultura já não podem ser vilãs.
Como o leitor que acompanhou esse texto pode perceber, a Lei do Preço Comum tem raízes numa época em que Jeff Bezzos era ainda um jovem adulto. Em 1981, ele tinha apenas 17 anos. Só em 1986 se formaria em engenharia. Associar tal lei apenas a uma reação à Amazon é mais do que um equívoco, é um recurso retórico a que um historiador como Elio Gaspari não tem o direito de recorrer. 
A Lei do Preço Comum não nasceu contra a Amazon. Nem contra a FNAC. A lei do preço comum nasceu para garantir ao leitor e à leitora que eles tenham uma livraria perto de casa e para fortalecer a bibliodiversidade. Para que o livreiro da periferia de Paris pudesse ter clientes. Para que a cidade Millau, no sul da França, também tivesse sua livraria. O mesmo pode acontecer com a periferia de São Paulo e a cidade de Tupi, a 684 km da capital. Se os Estados Unidos, ou pelo menos Minneapolis, tivessem uma lei assim, talvez a primeira Amazon mencionada neste texto ainda existisse, bem como muitas livrarias feministas ao redor do globo. E certamente mais livros feministas teriam circulado.
Vamos dar um longo passo atrás. Em economia, há um conceito chamado “preço predatório”. A prática se verifica quando uma empresa reduz o preço de venda para um valor menor do que o seu custo, gerando perdas no curto prazo, mas abrindo caminho para eliminar rivais do mercado ou criar barreiras à entrada de possíveis competidores. Posteriormente, quando os rivais desistem da disputa, o praticante do preço predatório pode elevar os preços novamente, obtendo ganhos no longo prazo.
Quando se formam monopólios e eles ficam economicamente poderosos de mais, há ainda outro risco relacionado ao preço: a empresa da ponta da cadeia obriga as demais a venderem com taxas de lucro muito baixas ou até negativas. Nesse caso, ela consegue concorrer deslealmente sem ter prejuízo, criando uma crise sistêmica que a favorece, mas prejudica o consumidor (no caso dos livros, o leitor).
A Lei do Preço Comum é um mecanismo legal que impede que qualquer empresa do setor do livro recorra a essas práticas. É uma lei que regula o mercado para evitar ações abusivas num mercado em que a verificação das ações predatórias e desleais é muito difícil ou economicamente inviável, dados a variedade de produtos disponíveis e o valor relativamente pequeno de cada um deles.
Assim, para o mercado do livro, a Lei do Preço Comum chega 134 anos atrasada em relação à primeira lei antitruste dos Estados Unidos, a Lei Sherman, de 1890.
(*) Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista e crítico literário. É diretor editorial de Opera Mundi e autor dos livros ‘Florestan – A inteligência militante’ (Boitempo, 2005) e ‘O Naturalismo e o Naturalismo no Brasil’ (Alameda, 2022). Atualmente, integra a direção da Liga Brasileira de Editoras – Libre.
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