sexta-feira, outubro 4, 2024
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Meu molar de Aquiles

Estávamos na dentista da minha filha quando fui pega por uma pergunta inesperada. Especialmente porque a doutora nunca tinha visto as dependências internas da minha boca. Do nada, ela se virou para mim: estou com um material novo, não quer fazer uma placa de bruxismo?

Fiquei alguns segundos em silêncio, como alguém que é flagrado nu, meus pobres molares constrangidos. Tentei lembrar se algum dia havia comentado com a dentista sobre meu hábito noturno de ranger os dentes. Não, eu não tinha. Como ela sabia que eu fazia isso?

Perguntei. Dessa vez foi a doutora que ficou sem jeito. Explicou que eu tinha um ar sério (queria dizer tenso?), que sabia que eu era escritora (queria dizer sofredora?), e imaginava que escritores fossem meio assim (queria dizer perturbados?). Nunca saberei exatamente o que ela queria dizer, mas naquele dia descobri que, por mais que a gente esconda certas coisas, o corpo as exibe.

Era só eu me olhar no espelho. Lá estava o meu maxilar, sarado a ponto de o meu companheiro ter me apelidado de “maxiluda”. De tanto ruminar meus problemas e mastigar com força, como alguém que busca debulhar as frustrações com a boca, fiquei com o queixo largo, robusto. O lado ruim: já quebrei dois dentes.

Ao sair da dentista, ainda pensando no assunto, percebi que não estou sozinha. A mente faz desenhos visíveis nas pessoas. É só olhar à volta. Quem nunca reparou na coluna envergada dos tímidos, na cervical que desponta como o caule de uma flor murcha, sedenta pela sombra do solo, pelo olhar livre do outro? Ou na coluna excessivamente ereta daqueles que creem ser melhores do que todo mundo?

O pensamento recorrente é como água mole em pedra dura, capaz de transformar a nossa aparência. Começando pela superfície elástica da pele. Veja o rosto dos portadores de tristeza crônica. A testa vincada. O bigode chinês prematuro. Os cantos da boca caídos. Sem falar nos ombros caídos. Aos sessenta anos, quando meu pai sofria de depressão, tinha o aspecto de um homem de oitenta. Agora, curado, perto dos oitenta, tem o aspecto de um homem de sessenta.

A mente pinta madeixas brancas. Esculpe sulcos. Faz cabelos caírem. Ou mãos puxarem cabelos. Cria calos. Define pisadas, marcas nos sapatos. Cria olhos baços ou vívidos. Dá a algumas pessoas um aspecto atraente. A outras, repulsivo. Deflagra doenças. E também realinha, ameniza. Até ajuda na cura.

Comecei a praticar meditação e meu maior aprendizado, até agora, foi descobrir que eu não sou a minha mente. E, se não sou a minha mente, posso observá-la. E tentar desfazer alguns de seus desígnios. Claro que não se silencia uma orquestra de pensamentos do dia para a noite. Ainda mais uma orquestra barulhenta e caótica. Mas perceber a mente já é bom começo. De qualquer forma, também encomendei aquela placa. E meus molares agradeceram.


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