sábado, outubro 12, 2024
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'Essa conversa de meritocracia não funciona', diz Alexandre Rampazo

Alexandre Rampazo está de volta. Rodeado de estantes com espaços ainda vazios e caixas fechadas espalhadas pelo apartamento, o ilustrador voltou neste mês a São Paulo após uma temporada de dois anos em Portugal.

“É aquela frase atribuída ao Tom Jobim, né. Morar fora do Brasil é bom, mas é ruim. Morar no Brasil é ruim, mas é bom”, diz Rampazo. “Tem toda uma questão de identidade e de não pertencimento. Lembro que um dia estávamos assistindo à televisão e começou um especial sobre a morte de um humorista português. Foi uma comoção nacional, mas aquele luto coletivo não me dizia nada. Eu nunca tinha visto aquele cara, não fazia parte da minha memória afetiva. E isso impacta.”

Mas não é só o autor paulistano que acaba de retornar. Coraline, uma de suas personagens mais famosas, também está de volta. Sete anos após protagonizar o já clássico “A Cor de Coraline”, a menina definida como “pensadeira” conduz agora uma história inédita. “Um Lugar para Coraline”, espécie de continuação do primeiro livro, chega às livrarias pela editora Rocquinho.

Não é que Rampazo tenha deixado de escrever e ilustrar durante a temporada lusitana. Como costuma ocorrer com diversos autores de literatura para a infância, seu trabalho é volumoso.

Nesse período, ele publicou no Brasil títulos como “Vai Rolar”, “O Que Você Vê”, que ganhou o selo Cátedra Unesco de Leitura, e “Silêncio”, vencedor do troféu da APCA, a Associação Paulista de Críticos de Artes, e segundo lugar no prêmio da Biblioteca Nacional. Fora isso, ele acaba de lançar também “A Caixa”, parceria com a escritora Paula de Santis, que sai pela Ciranda na Escola.

Mas a volta de Coraline é diferente. O primeiro livro se tornou um marco após o lançamento, em 2017. “O sucesso me assustou um pouco. Inspirou até um samba-enredo da Pimpolhos, a escola de samba mirim da Grande Rio. Não precisava mais de nada, né? A Coraline já tinha dado o recado”, conta. “Mas o tempo passou e as discussões sobre o que é ser negro no Brasil ficaram mais afloradas.”

“A Cor de Coraline” começa com uma pergunta feita por um colega da personagem: “Coraline, me empresta o lápis cor de pele?”. A partir daí, a narrativa é tomada por uma espiral de reflexões da menina, que aparece ilustrada por Rampazo sem cores definidas, fazendo com que o leitor não saiba qual é a cor de sua pele. Até que, no fim, descobrimos que a personagem é negra.

A revelação é necessária neste texto, porque o debate racial reaparece de maneira ainda mais profunda e complexa no novo “Um Lugar para Coraline”. Desta vez, a garota participa de um campeonato de natação na escola. Com uma linha do tempo não linear e bem amarrada, a obra se divide entre os pensamentos da protagonista, a própria competição na piscina e os bastidores da vida dela no colégio.

“Imagine uma criança que sai da escola, vai caminhando para casa, encontra o almoço em cima da mesa, come, dá uma cochiladinha e só depois começa a fazer a lição. Agora pense em outra que estuda no mesmo colégio, mas precisa atravessar a cidade de metrô e ônibus, cuidar do irmão mais novo em casa, esquentar a comida que a mãe deixou guardada e resolver um monte de coisas antes de começar a estudar. Se colocar na balança, você vê que essa conversa de meritocracia não funciona“, diz o autor.

Tudo isso ajuda a dar forma ao novo livro, mas de maneira estética e literária, sem didatismos pedagógicos já mastigados. Rampazo opta pelo caminho das metáforas e dos simbolismos para tocar nessas questões, que alcançam seu ápice numa das ilustrações de página dupla.

Nela, o leitor vê a piscina de cima, a partir de um ponto de vista aéreo e vertical. Sete crianças estão nadando, cada uma em sua raia. Cinco delas são brancas, enquanto duas são negras —justamente as que ficaram um pouco para trás.

“Pra eu ser a melhor, tenho que ser melhor que o melhor duas vezes”, comenta Coraline no texto.

Embora a narrativa converse diretamente com discussões sobre a cor da desigualdade no Brasil, o quanto a vida em Portugal, onde casos de racismo e xenofobia contra imigrantes não param de crescer, influenciou a escrita da obra?

“As pessoas costumam definir o brasileiro pelo samba, pelo bom humor, por ser um povo receptivo. Mas acho que não é nada disso. A gente é muito criativo. Tira qualquer problema da frente, acha solução para qualquer coisa. Mesmo que não saiba fazer, a gente se vira. Vi muito isso nos brasileiros em Portugal.”

Ou, como diria Coraline, é preciso “ser melhor que o melhor duas vezes”.


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