terça-feira, outubro 8, 2024
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Brás Cubas é o retrato do Brasil

“Só me faltam 100 páginas, e se eu for muito cuidadosa elas durarão até o fim de semana… E aí, então? O que eu deveria fazer com o resto da minha vida?”, pontuou, com misto de fascinação e lamento, a influencer e escritora Courtney Novak, que descobriu e leu recentemente “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, como parte de um desafio para o TikTok envolvendo escolha de obras de países em ordem alfabética. O que a norte-americana, que viralizou junto do clássico, talvez ainda esteja por descobrir é o quanto ele espelha o Brasil.

Brás Cubas, o “defunto autor”, figura das elites, é como que um retrato de seu tempo e da desfaçatez de sua classe. É um tipo a sintetizar, numa aura caricatural e anedótica, “pena da galhofa”, um agir e um pensar de um recorte da nossa história. O conjunto de personagens, de diferentes maneiras e segundo papéis e esferas sociais, se associa a ele de forma a possibilitar, no enredo, uma recriação sócio-histórica de mundo.

Em sua construção ontológica, Brás se revela um ser volúvel, camaleônico, sempre visando a interesses e trampolins sociais. Suas plurifacetas atravessam todo o arco narrativo: para escravizados, revelava-se um “menino diabo”; para uma moça atraente de origem humilde, era um disposto pretendente, até descobrir nela uma deficiência física; a um cunhado ex-traficante de escravizados, figurava como compreensivo; para a religião, constituía um doador que, no fundo, apenas desejava retrato na sacristia; ao universo político, correspondia o deputado ambicioso e inexpressivo, que depois perderia o assento; para o mundo dos finados, era o narrador isento, desapegado dos olhares externos, redigindo, porém, uma autobiografia a apontar para o oposto.

Essa amálgama se inscreve em um Brasil paradoxal, pano de fundo da narrativa, país que estimava ideias de fora —os prospectos liberais europeus— “pari passu” com a manutenção de um modelo econômico alicerçado no regime escravagista. Era, em outras palavras, um mundo de modernidade-atraso.

Há uma lente machadiana a capturar imagens da formação do país. Sob tal hermenêutica, Brás é o Brasil oitocentista, um país defunto, decaído em hipocrisias e contradições, o que traz à baila “uma verdade encoberta”, “chave de um saber”, como conceituaria Walter Benjamin ao tratar das alegorias. O próprio prenome do narrador, primeiras letras do nome do país, não teria sido um acaso para um mestre da linguagem, argumentam nomes da fortuna crítica do nosso “Bruxo do Cosme Velho”.

Ao mesmo tempo, o romance parece sempre permitir leituras do Brasil de outros tempos, como de hoje. Nesse exercício, certamente seríamos levados à visualização do espírito de tantas ambiguidades, que continuam a encalçar a nação, com antíteses de desatino nas mais diferentes conjunturas sociais, da vida cotidiana às estruturas do poder, em meio a avanços e pré-iluminismos conviventes na ordem do dia.

“Memórias Póstumas” é fruto colhido da densidade de um autor que pôde fazer-se intérprete de seu país.

Sua leitura continua a apresentar-se como um convite à exploração de um vasto horizonte. Continua a dar-nos conta de um Machado que permanece atual, frequentando de leituras de bolso e debates acadêmicos às redes sociais.

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