domingo, julho 7, 2024
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É nos menores frascos que estão as nossas maiores lembranças olfativas

Se eu pudesse, isto aqui não seria crônica de jornal, mas uma carta perfumada passada por baixo da porta. Um lencinho que, ao cair leve e sonso, deflagrasse um quê inebriante de flerte com o que guardamos de mais delicado.

O jeito, então, é me safar com este relato forçosamente inodoro, tendo a convicção de que palavras guardam uma fragrância própria, sempre muito bem fixada por memórias. E de que vocês pegarão no ar tudo o que senti ao avistar aquele diminuto frasco por entre os pertences de Lina Bo Bardi em sua Casa de Vidro: o mesmo perfume da minha mãe.

Bastou um segundo para que nariz e cérebro se alinhassem, colocando essas duas mulheres na mesma família olfativa. Suaves traços de lírio do vale, jasmim e ylang-ylang conectando a matriarca que sonhou estudar arquitetura à minha arquiteta favorita. Emoção e imaginação borrifando a cena de uma dando aulas de matemática na rede pública, enquanto a outra projetava o Sesc Pompeia.

Feito uma bibliotecária de odores, abri gavetinhas contíguas de um vasto catálogo naso-afetivo. Ao contrário das imagens, sempre meio borradas, primeiros cheiros me restaram nítidos: o amaciante de rosas no lençol do berço, o pó de arroz na maquiagem das tias que vinham apertar bochechas, a loção do avô me pegando no colo. E assim, percebi que a ciência da perfumaria tem um duplo sentido comovente ao usar as chamadas “notas de cabeça” e “de coração” em seus acordes sensoriais.

A partir dessa pirâmide nostálgica de eflúvios, saí farejando mais lembranças. Pinho: férias de 1997 em Campos do Jordão. Almíscar: vizinha de porta dando bom dia e mandando o pequinês parar de latir.

Alfazema: meu caminho de casa até a escola, pontuado pela emanação deliciosa de tinta automotiva vindo da oficina mecânica. Verbena: uma noite com mala extraviada em Budapeste. Lavanda: a oferenda floral que fiz para o amigo Paulo Vieira perto da casa do Van Gogh.

Zimbro e junípero: uma sequência de namorados que não cheirava nada bem, não por serem boys lixo, mas por banharem-se na mesma e terrível água de colônia. Camomila: um pedido de casamento e um filho. Limão e néroli: meu próprio aroma da paz.

Cada um de nós conserva sua essência, mas após a inspiração que foi aquele vidrinho de L’Eau de Lina Bo, me percebi atenta ao frescor de certos esquecimentos. Instada a cafungar mais ternuras, menos miasmas cotidianos. Em busca de uma vida mais perfumosa e menos perfunctória, por assim dizer. Torcendo para que rinite alguma acabe com esse respiro.


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