terça-feira, outubro 8, 2024
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Eu tô sabendo, pessoal

Devo ser justo, sair desta polarização infernal e agradecer ao Bolsonaro. Não fosse ele e o ódio que ajudou a engendrar em nossos pátrios, mátrios e frátrios corações, meu pai ainda estaria em Santa Catarina.

Vinte anos atrás, meu pai se mudou pra Florianópolis —a quem ele só se refere como “Floripa”, até nos destinatários dos envelopes, num gesto de carinho que segue intocado, apesar dos funestos acontecimentos que em breve serão narrados.

Retomando: por duas décadas meu pai viveu num lindo apartamento, debruçado sobre o Atlântico, assistindo a belíssimos pores do sol, sem maiores preocupações além de se questionar se o plural de pôr do sol era realmente “pores do sol”. (É, mas é feio demais e “crepúsculos” tampouco facilita, tem um ar meio gótico, o que traz o problema absolutamente paralelo a esta crônica que é escurecer no plural, em português).

Desde que meu pai foi pra Floripa, eu, meu irmão e a minha irmã tentamos, seguidamente, reimportá-lo. Demos a ele, inclusive, seis netos, mas meu pai é ardiloso. Dizia que com crianças tínhamos ainda mais razões para visitá-lo. Razões nunca faltaram, faltava é tempo, de modo que fui vê-lo bem menos do que gostaria. Ficávamos todos com saudades, imaginando se algum dia ele voltaria. Confesso que tinha perdido as esperanças.

Aí veio Bolsonaro. Em 2022, Santa Catarina deu 70% de seus votos ao capitão. Meu pai está longe de ser petista, mas lá por aquelas bandas todo mundo à esquerda do Mussolini é tido como PSTU. O clima foi ficando pesado. Meu pai não podia mais ir ao quilo sem se ver tragado para uma discussão política. Até o dia em que chegou em casa e encontrou um adesivo vermelho colado à sua porta —a informar os demais moradores do condomínio que ali vivia um “comunista”. (Um comunista que dirigia um Mini Cooper, é fã do Spielberg, do Elvis, da Marilyn e do Tarantino, mas ainda assim, aos olhos dos auriverdes vizinhos, um agente infiltrado do “perigo vermelho”). Foi então que meu pai, temeroso de que em breve tivesse que usar uma estrela vermelha costurada à roupa, decidiu que era a hora de voltar.

Ficamos felizes. O recebemos de braços abertos —e minha vida virou um inferno. Calma, nada contra o meu pai. Ele está ótimo e nos damos muito bem. O problema é que toda noite ele vai ao Bar Balcão, de onde já era frequentador assíduo antes de emigrar. Nos últimos 20 anos, também eu e meus amigos nos tornamos frequentadores e é aí que está o busílis da questão —seja lá o que for um busílis.

Todo amigo que o encontra tira uma foto e me manda. Modéstia à parte, tenho muito amigo. Meu pai também. Ou seja, faz quatro meses que o telefone começa a apitar lá pelas oito da noite e não para antes da uma da manhã. “Olha quem eu encontrei!”. “Olha quem tá aqui no Balcão!”. “Antonio, to tomando um chope com o seu pai!”. “Você não acredita quem tá aqui!”.

Eu acredito, minha gente. Eu sei que ele tá aí. Toda noite. Sei com que roupa, o que está comendo, bebendo, ao lado de quem está sentado. Tenho as fotos. Dezenas, talvez centenas delas. Cheguei a pensar que estes meses seriam perfeitos pro meu pai ser acusado injustamente de um crime. Álibis é que não faltariam.

Essa amabilidade coletiva é um dado muito bonito sobre o caráter do meu pai. Todos o amam. Eu também. Mas eu tenho filhos. Eu trabalho. Eu quero ler livros. Ver séries. Ter, enfim, aquilo que, até meu pai voltar a SP, eu chamava de “uma vida”. Peço encarecidamente para que parem de me escrever. Ou terei que tomar uma atitude drástica e colar uma fita vermelha (ou, pior, verde e amarela) na porta do meu pai. Grato pela compreensão, sem mais, subscrevo-me.


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