domingo, outubro 6, 2024
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É preciso barrar retrocessos

Se uma mulher violentada sexualmente praticar o aborto após a 22ª semana de gestação, estará sujeita a uma pena maior do que a de seu estuprador —é o que prevê, na contramão do caminho tomado por países democráticos e civilizados, o projeto de lei 1.904/24, que agora tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados.

Em uma espécie de ofensiva reacionária, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa aprovou, na quarta (12), proposta para inserir na Constituição as normas de criminalização de porte e posse de drogas que hoje fazem a lei brasileira anacrônica e ineficaz.

As duas pautas decerto envolvem questões morais e de segurança que preocupam grande parte da sociedade. Elas avançam no Parlamento, porém, sem discussão sólida de mérito de política pública, à base apenas de ideologia e oportunismo político —e omissão pusilânime das forças em tese contrárias.

Atropela-se, de saída, a mais básica lógica legislativa. Não há nenhum sentido, como sustentou na quinta (13) o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em atribuir urgência ao texto sobre aborto, que demanda reflexão e terá consequências de longo prazo. Tampouco tem cabimento cimentar no texto constitucional um tema de lei ordinária.

No entender desta Folha, porém, o erro fundamental está em tratar aborto e drogas sob o prisma da criminalização, não da saúde pública —no sentido contrário ao indicado por estudos e evidências no Brasil e no mundo.

No caso da interrupção da gravidez, o efeito prático e cruel do texto será marginalizar quem procura pelo procedimento tardiamente, particularmente crianças.

Segundo dados de 2022, meninas de até 13 anos são vítimas em 61,4% dos casos de estupro notificados no país —e em quase dois terços elas são violentadas por familiares, o que dificulta diagnosticar a gestação antes da 22ª semana.

O texto impensado ainda pode afetar procedimentos realizados por risco à vida da mulher ou anencefalia do feto, hipóteses também permitidas atualmente.

Quanto às drogas, as regras em vigor desde 2006 —que parlamentares à direita querem pôr na Carta— mostraram-se desastrosas, sem fixar distinção clara entre traficantes e usuários. A consequência foi escalada do encarceramento que, em vez de reduzir a circulação de entorpecentes, forneceu mão de obra para facções criminosas.

Este jornal defende a legalização do aborto, de drogas leves e da eutanásia, com base no princípio da autonomia individual, cujos limites devem ser os direitos dos demais. Avanços nessa direção certamente serão graduais —o que não se deve admitir são retrocessos.

editoriais@grupofolha.com.br

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