segunda-feira, outubro 7, 2024
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Degeneração política

Evento: seminário sobre a redemocratização brasileira em Washington, organizado no final dos anos 1980 pela Universidade de Maryland. Numa mesa, Darcy Ribeiro prometia entre jocosa e seriamente que, se o elegessem imperador, resolveria em três meses o problema econômico do Brasil. Maria da Conceição Tavares interrompe: “Não seja leviano, Darcy!” Ele então pergunta que êxito os economistas haviam obtido nos últimos 20 anos. Sempre autoafirmada como séria e honesta, ela responde: “Nenhum!” E contemporiza baixinho que Darcy levantava com verve o problema da decisão política.

Esse pequeno episódio, ambientado num debate entre pares cordiais de uma esquerda pensante, precedia o Plano Real, contra o qual, aliás, Maria da Conceição viria a assestar equivocadamente as suas baterias, já tendo antes apoiado o malfadado Plano Cruzado. Bom, economia não é nenhuma ciência exata. Mas do episódio ressoa até hoje a lição em uma frase, “a crise brasileira é política”, agora repetida nos vídeos em homenagem póstuma a Maria da Conceição Tavares, extraordinária economista (luso) brasileira, mestra de gerações, uma das maiores intelectuais que já pontuaram a nossa vida pública. Sobre a modernização tecnológica excludente dos pobres, tinha sentença definitiva: “Cada onda de modernidade é uma paulada no lombo do povo!”

Maria perfilou a falange de Celso Furtado e de gente que não dissociava economia de desenvolvimento social, pressuposto vigente no pensamento progressista antes da financeirização, que trouxe consigo o neoliberalismo paulista. Esse pensamento arrefeceu, mas se manteve nos anos 1990, ainda que sob a hegemonia dos setores arcaicos das forças armadas e da agropecuária, assim como sob o olhar de banda da entidade que se agigantava com a alcunha de “mercado”. Mantinha-se algo que sustentou a esperançosa social-democracia dos primeiros 15 anos deste século.

Mas há esperanças sem potência, por falta de âncora na realidade. O capital passa a orientar-se pelo imaterial, deixando de associar produção a desenvolvimento social, concentrando riquezas em fluxos financeiros e abandonando a ideia de humanidade como ampliação do campo de manifestação da verdade. Desamparadas, as massas abriram-se às drogas nostálgicas, químicas e religiosas, insumos da direita radical em toda parte. É a dopamina verborrágica contra o sentido da fala. Incapaz de se contrapor, a esquerda institucional ficou surda à voz interna da política, que se expressa por militância.

Maria da Conceição temia a degeneração política. Preferiu não se reeleger para o Congresso. Por quê? “Porque esse parlamento é uma merda!” Ela era sem meias palavras. Na rede, a imagem escatológica de um vereador em sessão da Câmara carioca concretiza a metáfora.


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