terça-feira, outubro 8, 2024
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Estante de livros

Pergunto se dói mais que injeção. Ele diz que depende da injeção. “Lembra da Benzetacil? Essa doía bem mais.” Pergunto se dói tipo tirar sangue. “Depende da mão da enfermeira.” Fecho os olhos, e o tatuador começa a desenhar uma pequena estante de livros no meu antebraço. Um desenho que fiz em um bloquinho de anotações, no dia em que meu casamento acabou.

Olhei meu desenho infantil e pensei: É isso. “É isso” o quê? Eu não queria exatamente uma tatuagem de estante de livros; queria a dor de uma caneta me esfolando a pele, escrevendo qualquer coisa na minha pele. Dando nome para aquela alegria que não era de bom-tom sentir e para o desolamento que vinha por baixo da hipomania e que eu sabia ser a maior tristeza que eu já havia experimentado. Queria um nome ou um desenho que pudesse me contar da vida pela frente ou de toda a vida que tinha ficado para trás.

Na infância eu escrevia meu nome com canetinhas bem escuras e desenhava as letras bem gordas. Eu pintava dentro delas, preenchia com bolinhas, listras, corações e olhos. Algumas ainda ganhavam rabos, chifres e remendos rococós. As vogais tinham até pernas e pelos. Toda a minha egolatria histriônica se formando ali, nas letras garrafais e burlescas desenhadas com a violência de uma pré-adolescente que temia ser um pequeno rascunho de nada.

A dor da estante de livros na minha pele. Por que não fiz uma estante gigante? Um desenho profissional? Muitas lombadas de livros? Queria que demorasse, para nunca mais me levantar da maca do tatuador. Quando percebo, estou falando a palavra “pacote”. Quero tatuar uma infinidade de pequenas coisas pelo corpo todo.

Um coração remendado; uma fênix; folhas, caules e flores; um divã; signo solar, ascendente e lua; um triângulo que lembre uma vagina; a casinha que eu desenhava na adolescência quando tive severas crises de ansiedade e ouvi da psicóloga que eu precisava acreditar que era a minha própria casa (assim eu não teria mais medo de sair); uma arruda igual a que meu avô colocava embaixo da minha cama; os tracinhos da pista quando o avião decola; a primeira vez que assinei meu apelido de infância em um trabalho da escola; um círculo pequeno e outro maior para proteger o círculo menor; a primeira letra do meu sobrenome para homenagear o meu avô; um regador; uma girafa divertida que me lembre diariamente de que preciso desenterrar o pescoço de dentro do meu trapézio para não ter cervicalgia.

Eu só quero ficar deitada aqui e que tudo seja desenhado na minha pele para que eu nunca mais precise abrir a boca ou uma página do Word. Sempre escrevi para não ser engolida pela dor, mas neste momento quero ser meu caderno de infância e receber no corpo a força da criança raivosa e seu nome imenso, legível e escandaloso: eu existo! Nem sei o que fazer da vida, mas se eu pudesse ao menos sentir diferente na superfície –que é ao mesmo tempo visível e bem separada do centro indizível.

Saio do estúdio do tatuador apenas com minha pequena estante de livros, mas agendo outras tatuagens para dali a três dias. Não sei como vou aguentar esperar tanto tempo para sentir aquela dor outra vez.


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