segunda-feira, outubro 7, 2024
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Como nasce um projeto antiaborto

Chamado pela Folha de PL Antiaborto por Estupro, o projeto de lei 1.904/2024 prevê pena de homicídio para quem realizar aborto após 22 semanas de gestação. Método usado nesse procedimento e proibido por uma resolução do Conselho Federal de Medicina (por sua vez, suspensa pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes), a assistolia fetal ganhou palco literal no Senado, na segunda (17).

O ponto que mais retumbou das horas de discussão capitaneadas pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE) foi a interpretação teatral de um feto por uma mulher adulta.

Naquela ocasião, o presidente do Conselho Federal de Medicina, José Hiran Gallo, estava lá para defender a resolução do conselho e alfinetar o Sistema Único de Saúde.

“Sobre o funcionamento da rede do Aborto Legal, que, se ampliada, poderia reduzir o martírio de vítimas de estupro, os questionamentos devem ser direcionados aos gestores do SUS, cujo silêncio tem contribuído pela dupla penalização da mulher violada”, disse.

O ataque ao SUS não entrou no relato da Folha. Havia outra frase mais forte, que ganhou um título: “Presidente do CFM diz que há limites para autonomia da mulher”.

O obstetra Raphael Câmara, relator da resolução do CFM, aproveitou a tribuna para dizer que achava excessiva “essa questão dos 20 anos” da pena, referindo-se ao tempo máximo de prisão proposto. Fez uma apresentação sobre como a assistolia causaria dor ao nascituro e algumas vezes reclamou da repercussão.

“A mídia detona o CFM, detona a resolução e não nos dá voz”, afirmou o obstetra. No começo do mês, ele havia publicado um artigo na seção Tendências/Debates, da Folha, com seu principal argumento: “Resolução do CFM que proíbe matar bebê de nove meses é contra a tortura“.

Na sessão, Câmara tentou exibir um ultrassom gravado durante assistolia fetal, mas as imagens não foram transmitidas pela TV Senado. Girão tomou a palavra e passou a versão da emissora, que alegava que, ao mostrá-las, infringiria a classificação etária e o Estatuto da Criança e do Adolescente. O senador explicou, em suas palavras, que “o bebê poderia ser identificado”. “A verdade incomoda”, concluiu Girão.

Falsas polêmicas como o ato teatral ou a classificação indicativa do ultrassom acabaram por movimentar mais o debate, que foi postergado no Congresso, mas ganhou força na sociedade. Protestos se fizeram ouvir, e o Brasil se tornou o país que mais pesquisava sobre aborto no Google.

A Folha cobriu ativamente o tema. Numa bem-vinda pesquisa Datafolha, aferiu a percepção popular a respeito do PL.

O resultado entre os evangélicos, levados ao centro do debate pela ressonância de lideranças religiosas, ganhou destaque. Ainda com fatia maior na população, católicos vinham abaixo. Ágil para repercutir falas controversas de pastores, o jornal demorou quatro dias para noticiar que a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) havia se pronunciado a favor do projeto.

E o que pensa o terço que o Datafolha descobriu também ser favorável ao projeto de lei que tornaria crime o aborto tardio após estupro? O que sugere gente favorável a ele que não seja senador ou deputado? O leitor não fica sabendo. É o segmento que provavelmente elege representantes como aqueles que votaram a urgência do projeto de lei.

A discussão desastrada no Congresso não exime o jornal de continuar a buscar explicações de lados opostos.

Falta também, gostando ou não, mostrar o que pensam congressistas e influenciadores quando propõem colocar bebês poupados do aborto para doação. Qual seria a ideia? Esperar o fim da gestação mesmo de uma criança vítima de estupro? Ter incubadoras à moda de “Admirável Mundo Novo”?

“Evidentemente que, [quanto] menor o tempo de gestação, mais será exigido do Estado a oferta de infraestrutura médica e hospitalar para dar suporte ao bebê, que precisará de cuidados intensivos para seu desenvolvimento”, explicou o presidente do CFM na sessão do Senado. A sugestão, ou questionamento a ela, não chegou ao leitor da Folha.

Mas chegou a checagem que desmentia a afirmação, feita pelo deputado e autor do projeto de lei, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), de que fetos são usados na indústria de cosmético: “Não há evidências disso.”

Ocorre que uma das fontes a que o deputado havia recorrido era um texto publicado na Folha pelo então colunista Carlos Heitor Cony, em 2008. Nele, Cony, que morreu em 2018, versava sobre um livro que trazia a tal teoria.

“O que Cavalcante omite, entretanto, é que grande parte do conteúdo do livro […] se baseava em evidências enganosas e gravações inexistentes e a obra foi desmentida pelos autores, ainda na década de 1970”, diz o texto, sem mencionar que no jornal tampouco houve esse contraponto.

No sábado (21), a Folha, obedecendo a seu Manual, corrigiu a informação em sua versão impressa. O texto de 2008, que está no ar num sistema antigo, ficou sem a atualização.


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