segunda-feira, outubro 7, 2024
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O papel de educador já não pertence ao professor

Ao longo de 32 anos como professor de medicina, percebi diferentes fases no ensino, seja na relação aluno-professor, seja no interesse profissional do jovem. O que ocorre nos últimos anos, contudo, é perturbante.

O ensino superior no Brasil vive um paradoxo expansionista, no qual a qualidade cedeu lugar à quantidade. Em adição, temos o papel recente das redes sociais no comportamento e aprendizado dos alunos, pois essas plataformas digitais chegaram no auge da fragilização qualitativa do ensino superior. Jamais vi tamanha modificação comportamental e de interesses!

Eu não entendo um professor que não seja educador. Quando falo educador, não me refiro à etiqueta doméstica, que deve vir da família. Refiro-me à postura, à linguagem científica, à vestimenta adequada, à conversa plástica para se fazer entendido por pessoas com níveis cognitivos e padrões socioculturais diferentes. Falo ainda da linguagem não verbal, que é ferramenta de empatia e compaixão na boa relação médico-paciente.

É inconcebível a medicina sem humanismo, como é inconcebível humanismo sem boa relação entre seres humanos —principalmente numa assimetria relacional, onde médico e paciente costumam ter expectativas desalinhadas.

As redes sociais incorporaram a superficialidade e banalizaram a importância da relação entre seres humanos no processo cura e/ou conforto. A “coisificação” humana está em curso de normalidade.

Em um recente artigo, pacientes que realizaram consultas com uma máquina de inteligência artificial tiveram nível de satisfação um pouco maior do que aqueles que consultavam o médico. Em outras palavras, o paciente começa a abdicar de prerrogativas relacionais com o profissional de medicina para entrar no pântano do “dr. IA” em consultas.

Para piorar, o ensino médico no Brasil, cada vez mais banalizado e massificado, não se mostra capaz de mínima reação. Ao contrário: parece satisfeito com esse rumo ameaçador.

As mudanças comportamentais são a expressão de evolução da humanidade. Nas últimas décadas, tivemos muitos ganhos na compreensão holística do ser humano, na tolerância à diversidade e no reforço ao respeito. Mais recentemente, porém, esse avanço estagnou-se, aprisionado numa bolha sufocante.

As redes sociais têm um poder avassalador. A medicina não escapou da contaminação por essa virulenta doença, mas a falta de reação é mais preocupante do que a enfermidade em si. Na atualidade, aceita-se o novo normal, mesmo diante de valores tão desprezíveis.

A universidade deve ser para todos, mas não para qualquer um, pois há intrínseca responsabilidade de quem recebe a unção do diploma de medicina num país tão desigual como o Brasil. Não bastassem as lacunas crescentes no mediocrizado ensino médico, o papel de educador já não pertence ao professor —o que é, particularmente, desastroso.

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