Sobre a mentira
Ao longo dos tempos, a mentira desperta interesse de religiosos, governantes, filósofos, poetas, cientistas, políticos, juristas, médicos. Trata-se, enfim, de uma valiosa mercadoria ideológica da humanidade.
A ética protestante não tolera a mentira. Nos tribunais, réu e vítima têm compromisso com a verdade. Não podem mentir. O perjúrio é delito grave.
Em outros sistemas jurídicos, como o que se pratica no Brasil e em outros países de formação latina, a mentira faz parte das regras do jogo. Réu (salvo se for colaborador da Justiça) e vítima não prestam compromisso de dizer a verdade.
Há um século, detectores fisiológicos da mentira tentam fazer parte do cenário punitivo.
Inquietante é o comentário de Jacques Derrida: “Mesmo supondo que a mentira tivesse uma história, ainda assim seria preciso contá-la sem mentir”.
Por aqui, a mentira da semana é a falsificação de nota jornalística, supostamente publicada na coluna Painel, da Folha, dando conta de que Janja, a primeira-dama, teria encomendado ritual de candomblé para conter a alta do dólar.
É pueril, mas não é verdade. Parece inofensivo, mas atrai milhares de acessos pelo WhatsApp. O que impressiona, sobretudo, é seu caráter preconceituoso (intrínseco) de crença, raça, cor, gênero.
A rigor, a perseguição policial da mentira, apesar de persistente, obsessiva, revela-se ineficaz ou tardia. Aparece em períodos autoritários ou democráticos.
Mentira deturpa realidade. Governos e opositores manipulam a informação e têm definições diferentes da verdade. Não gostam de ser contrariados. Notícia ruim é notícia falsa.
No Estado Novo (1937-1945), Getúlio decreta pena de até um ano de prisão para quem divulgar notícias falsas, “sabendo ou devendo saber que o são”, que possam gerar “desassossego ou temor”.
A Lei de Imprensa de 1953 pune notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados que provoquem “alarma social ou perturbação da ordem pública”.
O Código Eleitoral de 1965, herança da ditadura militar (1964-1985), ainda em vigor, reprime divulgação de fatos que se sabe inverídicos em relação a partidos ou candidatos e capazes de exercer influência no eleitorado.
A Lei de Imprensa de 1967 (perdeu vigência em 2009, por decisão do STF) pune publicação de notícias falsas ou fatos verdadeiros trucados ou deturpados que provoquem “alarma social” e “desconfiança no sistema bancário”.
As sucessivas Leis de Segurança Nacional trilham o mesmo caminho, criminalizando divulgação de notícia falsa, tendenciosa ou deturpada, de modo a “por em perigo o bom nome, a autoridade, o crédito ou o prestígio do Brasil” (1967), ou para “indispor o povo com as autoridades constituídas” (1969 e 1978), menos a última, de 1983, que não segue o receituário.
Jair Bolsonaro, mentiroso contumaz, sanciona a lei do Estado Democrático de Direito e veta a criação do crime de “comunicação enganosa em massa”, disseminar fatos inverídicos, capazes de comprometer a “higidez” do processo eleitoral.
Resolução recente do TSE equipara a utilização da Internet (inclusive mensageria) para “difundir informações falsas ou descontextualizadas”, em prejuízo de adversário ou a respeito do sistema eletrônico de votação, a uso indevido de meio de comunicação e, eventualmente, a abuso de poder político ou econômico.
Na política, a gênese da mentira é previsível. O que espanta é a predisposição para nela acreditar.
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