segunda-feira, outubro 7, 2024
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Esticando a corda: reforma tributária e a tensão entre fisco e contribuinte

Com a promessa de simplificar um sistema que é complexo e de difícil interpretação, que coloca o Brasil como um dos piores ambientes de negócio do mundo, a reforma tributária vem trazendo o temor de que a emenda saia pior do que o soneto.

Não podemos cair na armadilha do discurso da simplificação acima de tudo, da simplificação pela simplificação. A Emenda Constitucional 132/23 tem como um dos seus vetores a simplificação, mas esse não é o único. Deve-se privilegiar também os princípios da transparência, justiça tributária, cooperação e defesa do meio ambiente.

A reforma trouxe certa medida de simplificação, principalmente, com a unificação de impostos. Os novos IBS e CBS, que substituirão o ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins, vêm para modernizar o sistema de tributação sobre o consumo. Hoje, só o ICMS tem 27 legislações estaduais próprias, sem mencionar as incontáveis legislações municipais de ISS.

Além disso, o IBS e a CBS, que compõem um tributo sobre valor agregado dual, representam melhor forma de tributar, tornando a tributação mais simples, o que somado à promessa de não cumulatividade plena, é o caminho correto a ser tomado na tributação sobre o consumo.

A tributação deve ser simples e transparente para que os participantes do mercado entendam seu funcionamento e cumpram as regras. Apesar disso, a tributação também precisa possuir certo grau de complexidade para atender aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de ser uma sociedade livre, justa e solidária, como previsto em nossa Constituição. A palavra de ordem aqui é equilíbrio.

É nesse cenário que o Governo apresentou, recentemente, o PLP 108/24 que, dentre outros temas, trata do contencioso administrativo do IBS. Chamo atenção para esse ponto, porque devemos sair das críticas abstratas e divagações para lidarmos com situações concretas. Nesse novo projeto de lei complementar há uma violação a um dos princípios informadores da reforma tributária, qual seja, o princípio da cooperação.

O diabo está nos detalhes.

O desenho institucional proposto para o contencioso administrativo, com apenas uma das três instâncias de julgamento formada paritariamente por representantes do Fisco e dos contribuintes, deve acirrar ainda mais a tensão natural entre os dois.

O cenário se agrava na Instância de Uniformização da Jurisprudência, órgão composto exclusivamente por representantes fazendários, e que será responsável por uniformizar a jurisprudência administrativa do IBS.

A participação da sociedade civil nas decisões vinculantes é essencial, já que decisões exaradas por órgãos paritários possuem maior chance de serem acatadas pelos contribuintes, uma vez que que seriam percebidas como justas. Sem essa participação, parece-me haver uma ruptura com o princípio da cooperação. A atual proposta de composição da Instância de Uniformização é inconstitucional à luz do texto introduzido pela EC 132/23.

É péssimo sinal o encaminhamento da proposta nesses termos. A situação eleva os ânimos, traz insegurança jurídica e aumenta os riscos de investimentos no país.

Se justo a instância responsável por determinar precedentes vinculantes não apresenta composição paritária, é razoável supor que o Estado, em seu ímpeto arrecadatório, não tem interesse em cooperar.

Ademais, um órgão tendencioso ao Fisco esvazia o contencioso administrativo para o contribuinte, que tenderá a perder discussões que estão nas zonas de dúvida ou penumbra, podendo trazer como consequência uma maior judicialização. Essa seria mais uma derrota para o contribuinte, que poderia ter no contencioso administrativo do IBS julgamentos com debates mais técnicos, nos moldes que ocorrem no Carf.

Outra questão que merece atenção é a segurança jurídica. Recentemente, o governo vem apresentando medidas provisórias que alteram as regras do jogo com a bola rolando. Como exemplo, temos a MP nº 1.227, que tentou mudar as regras de compensação de crédito tributário, criando enorme insegurança no mercado.

Parece que o governo está em uma queda de braço com o mercado, mudando regras já consolidadas no meio do jogo —e, assim, diminuindo a coerência do sistema— para barganhar. A estratégia parece ser esticar a corda para, depois, chegar a um meio termo. Com isso, o Executivo dá outro exemplo de que a cooperação entre Fisco e contribuinte não é prioridade.

A reforma tem pontos positivos, mas todo cuidado é pouco. Um sistema que pressupõe colaboração mútua deve ter como fundamentos inegociáveis a boa-fé, confiança e respeito recíproco entre os participantes. Isso passa pela participação paritária nos órgãos de julgamento e se estende ao cumprimento das regras democraticamente estabelecidas. Não há espaço para surpresas e distorções com fins meramente arrecadatórios.

É na cooperação, confiança mútua e segurança jurídica que o sistema se fortalece, tornando possível atrair investimentos, gerar crescimento econômico e promover os direitos previstos na Constituição.

Nesse momento histórico de reforma tributária, é necessária a atenção da sociedade civil para que os desenhos institucionais escolhidos sejam harmônicos. O governo deve parar de tentar insistentemente criar surpresas desagradáveis para os contribuintes. O sistema tributário deve ser pensado para funcionar em conjunto, com regras bem estabelecidas, previsíveis e transparentes, caso contrário, voltaremos à complexidade excessiva. A reforma, então, em vez de promover avanços, vai criar problemas novos e agravar os antigos.

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