domingo, outubro 6, 2024
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A Mirian não pode falar de velhos porque ela não é velha, falou Ziraldo

O jornalista Zuenir Ventura me convidou para apresentar as minhas pesquisas sobre envelhecimento, autonomia e felicidade no workshop “Afinal, o que é ser velho no Brasil?”, no dia 5 de janeiro de 2015.

Ele queria que eu falasse sobre “a bela velhice” para o elenco e equipe do espetáculo “Barbaridade, o musical”, uma comédia sobre as dores e delícias de envelhecer baseada na amizade de Zuenir, Ziraldo e Luis Fernando Veríssimo. Em 2015, Zuenir estava com 83 anos, Ziraldo com 82 e Veríssimo com 78.

Falei durante mais de uma hora para um público de 50 pessoas, incluindo a atriz Susana Vieira, os atores Edwin Luisi e Claudio Tovar, o diretor José Lavigne e o autor Rodrigo Nogueira.

Com 72 anos na época, Susana Vieira concordou quando eu disse que as mulheres mais velhas não se casam de novo porque não querem cuidar de mais ninguém. E que os homens preferem as mais novas porque elas cuidam deles. Quando eu disse que uma das atitudes necessárias para envelhecer bem era não se preocupar com a opinião dos outros, a atriz gritou: “Sou a rainha disso”.

Quando estava no finalzinho da minha fala, Ziraldo chegou, sentou-se ao lado de Zuenir e reclamou: “Só quem é velho mesmo é que entende do assunto. A Mirian não pode falar de velhos porque ela não é velha”.

Perplexa com a afirmação do Ziraldo, que não havia escutado nadinha do que falei sobre as minhas pesquisas, me abaixei e me escondi sob a mesa. Todo mundo riu muito.

Eu já pesquisava o tema desde 1990 e, apesar de ainda não ter 60 anos, não era nenhuma menina. Não sei como consegui “brincar” com a situação constrangedora. Não me senti nem um pouco agredida ou ameaçada, nem mesmo quando Susana Vieira concordou com Ziraldo: “Verdade, só os velhos sabem o que é velhice”.

Para amenizar o meu constrangimento, Zuenir brincou com as dificuldades cotidianas da velhice: “Vamos fazer uma passeata contra as pedras portuguesas e outra por um mundo sem escadas”.

Ziraldo acrescentou: “A nossa história tem que surpreender. Eu, por exemplo, não tenho medo de morrer, sabia? E nem saudades da infância“.

Dois dias depois, O Globo publicou uma matéria sobre o evento com uma série de três fotos minhas reagindo à observação do Ziraldo, com o seguinte título: “Unidos por um mundo sem escadas: elenco e ‘musos inspiradores’ de peça sobre velhice participam de bate-papo sobre tema”. Na legenda das fotos escreveram: “Oi? Ao lado do diretor José Lavigne, Mirian Goldenberg se surpreende com a opinião de Ziraldo (‘só quem é velho entende de velhice’) e finge que vai se esconder sob a mesa”.

No mesmo dia, Zuenir me telefonou pedindo desculpas. Ziraldo ligou em seguida pedindo perdão e disse que queria fazer um livro comigo. Adorei a ideia. Será que, 35 anos depois de “O Menino Maluquinho”, de 1980, ele iria criar “Os Velhinhos Maluquinhos”?

No dia 30 de janeiro de 2015, Ziraldo me enviou o seguinte e-mail:

“Recebi os textos. Já estou lendo.

Aí está a sugestão para a capa do livro e o trailer (uma matéria da Bravo de novembro/2012).

Adorei seu interesse e entusiasmo.

Assim que você ordenar, começamos os serviços.

Beijão do Ziraldo”

Ele me enviou várias charges, entre elas uma que dizia: “melhoridade é a puta que pariu” e outra: “me chamam de velho… tudo bem… mas queria ser inglês para me chamarem de ‘elder’. Soa tão mais bonito, tão mais respeitoso”.

Trocamos inúmeros e-mails durante mais de um ano. Infelizmente, tive um problema sério de saúde, precisei fazer uma cirurgia e não pudemos continuar com o projeto do nosso livro.

Ziraldo me escreveu no dia 3 de março de 2016:

“Jovem Mirian,

Antes de tudo vou te dizer uma coisa rara do falar brasileiro (aqui, no caso, absolutamente verdadeira): “estimo suas melhoras”.

Você contando tudo tão docemente sobre sua convalescença, me dá vontade de ir até aí te fazer o carinho que os convalescentes necessitam. Juro que nosso livro vai sair ainda este ano, antes da Olimpíada – se você andar rápido – e te digo mais: já tenho a editora. Só falta conversar com eles sobre adiantamentos. Já te passei o material que pretendo usar no livro. Você vai decidir como vamos usá-lo. Seguindo suas instruções, estou preparando meu texto de abertura, contando tudo o que aconteceu, do princípio até agora. Contando, é claro, como a ideia do livro nasceu. Tão logo você se recupere, a gente se reúne para estruturar o livro, ok?

Sare logo, volte a ficar bonitinha e vamos à luta.

Yours,

Ziraldo”

No dia em que Ziraldo morreu, aos 91 anos, 6 de abril de 2024, chorei muito quando reli a nossa troca de e-mails e vi o desenho da capa que ele imaginou para o nosso livro: uma esfinge e um ponto de interrogação. O título que ele escolheu foi:

“Ninguém entende de velhice: a não ser, é claro, a Mirian Goldenberg”.


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