segunda-feira, outubro 7, 2024
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Nossa Abbey Road não existe

Londres, 8 de agosto de 1969. Os Beatles se preparam para atravessar a faixa na Abbey Road. Eles conversam e riem. Paul está descalço. Linda tira uma foto do grupo antes do gesto oficial.

Eles parecem felizes em refazer o passeio pela faixa, apesar do fim iminente do quarteto. Eles têm prazer em brincar numa travessia, que serão capazes de cruzar a rua e seguir em frente quando quiserem.

A cena, repetida pelos turistas do mundo inteiro (veja o link em tempo real aqui), é mais do que uma fantástica capa de disco. Ela virou também o motivo para a criação de um dia que homenageia quem anda a pé, o Dia Mundial do Pedestre.

São Paulo, 8 de agosto de 2024. A massa de pedestres para no sinal e toma coragem. Atravessar uma avenida de São Paulo é um dos momentos temidos por quem anda a pé. Ao contrário do quarteto cabeludo, aqui, as pessoas precisam se munir de seriedade e concentração para enfrentar uma faixa de pedestres, quando ela existe.

Não se brinca para atravessar nossas ruas. É preciso esperar pelo motoqueiro retardatário, que passa muito depois de o sinal fechar. É preciso desviar do carro que ficou parado no meio do cruzamento. Quando você finalmente se certificou de que está tudo ok e começa a atravessar, o homenzinho verde já virou vermelho e começou a piscar. Chegar do lado de lá é um alívio e uma vitória que não se comemora.

A soma das experiências individuais insatisfatórias desemboca numa tragédia. Estão morrendo mais pessoas a cada ano no trânsito. No estado de São Paulo, no primeiro semestre, o número de óbitos aumentou inacreditáveis 23% na comparação com um ano atrás. Na capital, 928 pessoas morreram ano passado, o maior número em oito anos. Pedestres e motociclistas estão sempre entre as maiores vítimas. Gente que estava trabalhando ou tentando chegar a algum lugar.

A celebração do Dia Mundial do Pedestre aqui deixa um gosto ruim. A prefeitura faz o que sempre faz no dia, uma campanha bonitinha e inócua. Não fiscaliza, não multa quem passa no sinal vermelho, não mexe na área de calçadas e, num gesto temerário, que ameaça o estudo das causas dos acidentes, não divulga mais os relatórios de sinistros, alegando problemas técnicos que já duram mais de dois anos. A meta de redução de mortes no trânsito, alardeada como nosso primeiro passo rumo ao Visão Zero —nenhuma morte no trânsito— foi sepultada sem dó.

Ao contrário de outras grandes cidades, que implantaram programas rigorosos de segurança, cuidar do pedestre parece ser um tema menor entre políticos, mesmo num ano eleitoral.

Por que Paris, Bogotá, Copenhague, Londres estão se preocupando mais com isso enquanto São Paulo parece estar andando para trás? Por que o tema ressoa tão pouco nas pautas eleitorais?

Talvez porque a maior parte das pessoas que tomam decisões, incluindo políticos, não ande a pé, apesar de 2/3 de todos os deslocamentos diários em nossas cidades serem a pé.

Talvez porque alguns candidatos a considerem uma pauta “burguesa”, em vez de pensar que o meio mais democrático e mais sustentável de transporte é também o mais usado para acessar o posto de saúde, a escola e o ponto de ônibus, principalmente nas periferias.

Talvez porque fiscalização seja uma pauta antipática. É mais fácil se juntar à ladainha da “indústria da multa”, que veio como um mantra para esconder o simples fato de que não se multa quem não comete infrações. A isso, se adiciona o fato de que a moto realmente passou a suprir uma necessidade básica para lugares com pouco transporte público, mas a minoria que abre o escapamento e assuste as outras pessoas acaba passando ilesa.

Talvez ainda vivamos no deslumbramento do automóvel. O sujeito compra um Porsche que chega a 250 km/h e mata alguém em rua com limite de 50 km/h. As autoescolas fazem pouco ou nada para educar motoristas e motoqueiros a respeitarem ciclistas e pedestres.

Talvez porque os técnicos da prefeitura ainda sejam mais cobrados pela fluidez do trânsito do que pelas mortes que o trânsito causa. Quando o ex-prefeito Fernando Haddad baixou as velocidades, praticamente selou suas chances eleitorais. Mas foram os anos em que o número de mortes realmente começou a cair.

Talvez exista uma dificuldade sociológica em nos reconhecermos no nosso papel de pedestre. Sou motorista, sou ciclista, sou passageiro, sou cidadão, sou torcedor, sou contribuinte. Mas ninguém é pedestre, ou melhor, ninguém se sente suficientemente pedestre parasse sentir indignado contra a falta de civilidade no trânsito que ameaça a própria fruição da cidade.

É nossa contradição. Nossa Abbey Road não existe.


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