segunda-feira, outubro 7, 2024
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Obá, a amazona destemida

Desde que comecei a escrever nesta Folha sobre a mitologia dos orixás, tenho recebido diversas mensagens pedindo sugestões de leitura para quem deseja se aprofundar no tema. Embora exista uma vasta gama de publicações disponíveis, acredito que a coleção Orixás da editora Pallas é uma das mais significativas e merece destaque.

Fundada na década de 70, a editora Pallas é conhecida pela vanguarda em publicações da literatura afro-brasileira. Já a coleção Orixás, que foi publicada na década de 1990 e recentemente reeditada, é notável por seus textos acessíveis, profundos e objetivos.

A coleção Orixás contribui para a democratização de ensinamentos valiosos sobre o candomblé e da umbanda, religiões afro-brasileiras com profundas raízes na cultura e espiritualidade do Brasil. Cada volume aborda um orixá específico e é escrito por especialistas, que são também praticantes das religiões.

Nesse sentido, o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva contribui com o livro sobre Exu, o renomado griot e doutor honoris causa pela UFRJ Nei Lopes escreve sobre Logun Edé e a filósofa Helena Theodoro discute Iansã e assim por diante. Em nosso foco de hoje, falaremos sobre a orixá guerreira Obá, cujo título na coleção é escrito pela iyalorixá Cléo Martins.

Como ressalta Martins, “Obá é a senhora da guerra, a amazona destemida, uma sábia e justa feiticeira”. Ela conquistou sua reputação através de inúmeras batalhas, domina todas as armas e é a guardiã da sociedade Elecô, uma organização secreta composta exclusivamente por mulheres feiticeiras, onde os homens são proibidos de entrar. A lenda diz que “aquele que se aproxima de Elecô paga com a própria vida”.

Obá é a esposa mais velha de Xangô, o rei ancestral de Oyó. Na cultura yorubá, a poligamia é comum e o número de esposas reflete a riqueza do rei, que deve sustentar todas e os seus filhos. A primeira esposa, chamada ialê, tem um papel central na organização familiar, sendo a mãe mais velha das outras esposas e de seus respectivos filhos e filhas.

No entanto, a senioridade de Obá traz desafios, especialmente porque Xangô prefere as outras esposas, como Iansã, seu “par perfeito” no governo de Oyó, e Oxum, sua companhia preferida nas horas mais leves. Como afirma Cléo Martins: “Xangô desdenha de Obá porque ela é idosa e sem atrativos, mas morre de medo do poder que dela emana”.

Um dos itãs mais conhecidos sobre Obá narra um episódio em que ela se sente profundamente desvalorizada por Xangô. Em busca desesperada por validação, Obá é enganada por Oxum, que sugere que ela prepare um ensopado para o rei usando suas próprias orelhas. Determinada a ganhar a aprovação e o amor de Xangô, Obá realiza o sacrifício extremo e corta suas orelhas, levando-as até Xangô como prova de sua devoção. No entanto, ao encontrar as orelhas em sua sopa, Xangô fica enojado e expulsa Obá de sua presença.

Esse itã leva à reflexão sobre até onde podemos nos ferir na busca por validação alheia. Para as mulheres, a lição é fundamental. Obá, uma líder da sociedade Elecô e guerreira vitoriosa, não deveria ter chegado a tal extremo. Sua rival Oxum, que simboliza o amor-próprio, pregou-lhe uma peça.

Diversas interpretações são possíveis. Alguns questionam a literalidade da história, considerando a sabedoria e a experiência de Obá. Para os que veem o itã de forma metafórica, ele oferece reflexões valiosas. Ao entregar suas orelhas, associadas à audição, a Xangô, Obá experimenta sua maior derrota.

Para as mulheres, acreditar em si mesmas, sobretudo em relacionamentos desrespeitosos, pode representar uma afirmação do poder que emana de sua própria força.

Xangô, como representante do poder patriarcal, tinha que lidar com a influência de Obá em sua própria casa, onde ela exercia controle sobre as outras esposas e filhos. A aversão de Xangô por Obá pode refletir a dificuldade de aceitar o poder feminino em seu ambiente. A história de Obá nos ensina a importância de confiar em nós mesmas e a nutrir o poder que reside em nosso interior, sob pena de um desfecho trágico.

Embora seu culto no Brasil seja cada vez mais raro, na prática religiosa do candomblé, nenhum homem pode ser iniciado para Obá. A chefe da sociedade Elecô apenas aceita cabeça de mulheres.

Na próxima semana, continuaremos com a nossa série, dessa vez falando sobre um dos mais conhecidos orixás, o poderoso e destemido Ogum. Até breve!


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