segunda-feira, outubro 7, 2024
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Homens que correm com lulus-da-pomerânia

Não nasci para tutora de pet. Ou achava que não tinha nascido. Nunca imaginei ter um até que minha filha cresceu um pouco, ganhou voz e passou a latir pelo seu desejo. E como latiu. Acabei por me render e hoje temos uma cadelinha que pesa o mesmo que um frango.

Claro que passei a amar a cachorra. E o que eu mais temia na aventura de ter um pet se revelou a minha parte preferida: levá-la para passear. Tem horas que detesto ter que levantar para fazer isso. Como aqueles domingos em que já bebi demais e minhas nádegas estão grudadas feito um imã à poltrona. Ou nos dias de semana, quando estou escrevendo e não quero parar, não quero interromper o fluxo.

É aí que entra uma das vantagens do passeio: é preciso interromper o fluxo. No mundo da produtividade incessante, o cachorro te obriga a parar. No mundo do carro e do condomínio, te obriga a colocar as duas patas na rua. No mundo da tela, te obriga a contemplar. No mundo solitário da escrita, te obriga a interagir com o outro.

Como pais e mães de bebês, que se reconhecem imediatamente pelas olheiras e pelos apetrechos do puerpério, os tutores também se enxergam nas suas similitudes. Adoro observar os bípedes dos quadrúpedes. Geralmente a dupla tem o mesmo estilo: homem fortão com cachorro grande ou parrudo, perua com cachorro de roupa e chuquinha, senhora de idade com cãozinho miúdo, tipo esportivo com tipo corredor e, num país em que a desigualdade social chega até nos cães, vira-latas magros, mas bem-amados, junto de moradores de rua.

Mas nem sempre tudo é tão previsível. Às vezes a vida dá “shuffle” e você vê um daqueles sujeitos de carranca e porte ameaçadores, que normalmente fariam uma mulher atravessar para o outro lado da rua, sendo arrastado por um delicado lulu-da-pomerânia.

E aqui digo sendo arrastado porque, muitas vezes, são os canis que guiam os sapiens. Donna Haraway diz que homens e cães são “parceiros no crime da evolução humana”. Espécies companheiras que criam uma à outra na carne. Que se transformam mutuamente, para melhor, em diversos aspectos.

Graças à minha cachorra me torno uma pessoa mais empática. E até mais tolerante. Esses dias, ela encasquetou de cheirar o cão de um sujeito de orientação política totalmente oposta à minha, como mostrava a estampa de sua camiseta.

Travada naquela situação, sem conseguir desembestar a bichinha dali, acabei por conversar com o sujeito e até dar uma risada, coisa que nunca aconteceria em outra circunstância.

Achei a experiência saudável mas confesso que, ao me distanciar um pouco, olhei de novo para a camiseta dele e voltei a rosnar. Civilizados ou não, domesticados ou não, ainda somos todos de sangue e osso.


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