segunda-feira, outubro 7, 2024
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Autora angolana, em belo romance, narra a opressão aos imigrantes em Portugal

Um jovem negro sai com os amigos para divertir-se. No meio do caminho, vão abastecer o carro em um posto de gasolina. Entre os jovens, nada de anormal, pelo contrário, o estado é de festa e confraternização. No entanto, do nada, são atacados por homens armados —denominados por eles de “skinheads”—, que os xingam e agridem, e aos berros, dizem: “Pretos, voltam para vossa terra”, como se não fossem dela, nascidos e criados.

Sem defesa, restam-lhes os hematomas e a humilhação. Resolvem então chamar a polícia. Os policiais chegam e ouvem os jovens, os funcionários do posto de abastecimento e as moças que os acionam. Aos jovens negros, fazem muitas perguntas, sempre com palavras duras, tratando-os, não como as vítimas, mas os suspeitos. Mesmo com a dor e o sangue a escorrer da boca, os policiais impõem a ida de todos para a delegacia —mas algemados.

Na cena seguinte, já com o dia claro, deixaram a delegacia. Ao cruzarem a porta, entra, esbarrando neles, um dos agressores, que é tratado como agente Lopes. “O filho da puta dos skinheads é policial”, constatam. Na volta para casa, com a cabeça com “vida diferente do corpo”, o jovem agredido só “queria vomitar”. E ainda diz: “Quis gritar, partir tudo. Limitei-me a ficar horas e horas sentado na minha cama. Sono nenhum.”

Este é o trecho do belíssimo “Um Preto Muito Português” (Quetzal), romance de estreia de Telma Tvon —nascida Telma Marlise Escórcio da Silva—, autora angolana, radicada em Lisboa, onde mora desde a juventude.

A história, narrada em primeira pessoa pelo jovem João Moreira Tavares, conhecido como Budjurra —alcunha para cabo-verdiano, assim como angolano é “mangope”, moçambicano é “moçambas” e guineeses é “guitarra”—, tem reflexos bastante próximos de um país como o nosso, o Brasil.

Vivendo na periferia da cidade lusitana onde nasceu, filho de país cabo-verdianos, com irmãos igualmente portugueses, Sandra e Carlos, Budjurra narra as suas aventuras e sagas, o seu dia a dia na luta pela subsistência, trabalhando feito operário de quinta categoria em um call center, mesmo depois de licenciado numa universidade.

Na prática, Budjurra faz parte de uma minoria que, aos poucos, “vai sendo cada vez menos minoria.” Como descendente de africano, o jovem negro não é visto como europeu, embora nascido em terras portuguesas. No romance, com termos lusos fora dos padrões brasileiros —onde “esquadra” é delegacia; “receção” é recepção; “fato” é roupa; “metro” é transporte, como o nosso metrô—, o livro nos ambienta para uma realidade cruel, homofóbica, bastante racista, onde o que resta para essa população, que engrossa a fileira de imigrantes do país, até hoje, é o lugar da subalternidade e precarização nos postos de trabalho e muita violência física e psicológica.

Narrada em primeira pessoa, a linguagem de “Um Preto Muito Português” é coloquial, chegando a trazer referências a personalidades do mundo pop brasileiro —como Taís Araújo e Maria Bethânia, por exemplo.

O livro de Telma Tvon trata de cotidianos de opressão em vidas de imigrantes e seus descendentes —como é o caso dela, nascida em Luanda, em Angola, no ano de 1980, e que, além de escritora, é rapper e participa de grupos de MCs femininos, onde começou sua atividade artística e cultural.

A obra, ao falar de exclusão e opressão sociocultural, fala, ao mesmo tempo, de nossa humanidade. “Posso dizer, sem qualquer orgulho, que sou um homem estranho, tão estranho como a minha alma.”

Neste ponto, Budjurra pontua o seu lugar na sociedade lusitana como homem negro —ou melhor, como “homem preto”. Transitando pela cidade de Lisboa, onde vivem outros iguais a ele, todos em busca de uma vida melhor, o personagem de Telma Tvon é mais um ser perdido na multidão, à procura de sonhos e esperanças.

Na busca pela sua afirmação na vida, partilhando de uma realidade que o aprisiona como cidadão de segunda classe —em oposição ao conceito “white power” tradicional português—, Budjurra, ou qualquer dos seus semelhantes, “mostra-nos como se vive por dentro da invisibilidade da comunidade africana, como se lida com as narrativas falsas que a envolvem, como se sobrevive aos preconceitos e ao esquecimento.”

Em termos dos personagens e a realidade vivida —negros e periféricos, subempregados e esquecidos, pelo governo e pela Justiça—, tudo muito parecido com o Brasil em que vivemos. Seja na cor da pele do “preto muito português”, como é o caso de Budjurra, seja no impacto de vidas de milhares dos nossos jovens brasileiros, presos nos submundos dos subúrbios e favelas.


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