domingo, outubro 6, 2024
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No cinema, o inferno são os outros

Meu pai, entre outras atividades profissionais, era projecionista de cinema. Ganhar a vida honestamente tem disso.

Graças a ele frequentei muitos cinemas em que trabalhava, das salas de bairros, como o Ouro Verde e o Bandeirantes, às da Cinelândia Santista, ao longo da Avenida Ana Costa, casos do Cine Gonzaga, depois Atlântico, e de meu preferido, o saudoso Cine Indaiá, que tinha em suas paredes poemas de Vicente de Carvalho.

Na época, anos de 1960 a 1970, tempos de minha infância e adolescência, não havia os cinemas “multiplex”. As salas eram enormes, algumas com mais de mil lugares, incluindo “pullmans”, mezaninos que ficavam ao fundo. Ali eu ficava, geralmente sozinho, sob os olhos de meu pai, que me via pelas janelas de projeção.

Antes disso, ele me levava até a cabine, onde eu podia apreciar sua arte. Meu pai rebobinava os rolos de filme, recortava partes danificadas e fazia colagens imperceptíveis à assistência. Ele acoplava as lentes adequadas nos projetores, posicionava os carvões que geravam os arcos luminosos que serviam para projetar as películas. Também alternava os projetores para não perder a sequência do filme, colocava a música ambiente antes do início da rodagem, que era precedida por uma simulação imponente de três badaladas de sino.

Filmes impróprios? Nem pensar! A não ser quando eu levava comida para ele nas maratonas de domingo. Ele entrava à tarde e ia até a última sessão. Aí, eu dava umas espiadelas, antes de levar uma bronca. Eu era como o menino de Cinema Paradiso.

Para alegria de dentistas, comi todas a jujubas e balas que tive direito. Essa exclusividade me permitia prestar atenção nos filmes e, seguramente, me tornaram cinéfilo.

Confesso que depois, já trabalhando e pagando para ver filmes em qualquer cinema onde houvesse uma obra de interesse, fui a várias sessões seguidas de modo a melhor entender o enredo e as atuações. Nunca saí em meio a uma sessão, a não ser por conta de uma crise de cálculo renal

A diferença é que não havia mais “pullmans” onde eu poderia assistir às projeções com comodidade e tranquilidade. Todos se transformaram em novas salas.

Foi o caso do Cine Indaiá-Arte, do Atlântico 2, e do Iporanga 2 e 3. Para mim, a melhor sala, do ponto de vista ergonômico, era o Praia Palace. Todos são coisa do passado.

No entanto, estou cada vez mais distante das salas de cinema, não por culpa dos filmes ou instalações, mas de certos frequentadores. Minha mulher diz que eu atraio esse tipo de pessoas, por mais que eu tente evitar.

Mesmo quando há várias poltronas disponíveis, alguns resolvem sentar logo atrás da minha e iniciam sua sessão de torturas: chutes, farta mastigação com a boca aberta, bate-papos animados, em voz alta, sobre assuntos alheios ao filme, tradução simultânea de filmes legendados para crianças com idade incompatível com a recomendação etária e choro de bebês.

Tem gente que só vai ao cinema incomodar os outros. E quando alguém pede silêncio, se sentem incomodados —quando não reagem de forma agressiva. No escurinho do cinema revelam seu caráter.

Não consigo entender esse tipo de atitude, que demonstra falta de bom senso e de civilidade, para não dizer de educação. Por isso tenho preferido assistir filmes em casa, onde o único chato sou eu mesmo. É uma pena, pois nada substitui a telona, sobretudo quando o cenário é parte do enredo.

Essas pessoas querem ser protagonistas ou coadjuvantes? Então, que procurem fazer seus próprios filmes! Certamente não estarei entre os que pagarão para assisti-los.


Adilson Luiz Gonçalves é escritor, engenheiro, pesquisador universitário e membro da Academia Santista de Letras.

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