domingo, outubro 6, 2024
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As sequelas da violência de Estado no Brasil

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 contabilizou 6.393 pessoas mortas por policiais em 2023, das quais 83% eram negras e 72% eram jovens de 12 a 29 anos. Esses números deveriam chocar a consciência de qualquer sociedade que se considera democrática. Mas o impacto da violência de Estado é ainda maior e mais amplo do que as estatísticas indicam.

Por trás de cada uma das 6.393 vidas ceifadas, há uma família que sofre as sequelas decorrentes dessa violência estatal. Como disse a mãe de um jovem morto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro ao relatar crises de ansiedade, depressão e tentativas de suicídio do filho sobrevivente após a morte do irmão, a violência de Estado “acaba com a nossa saúde, acaba com a nossa vida. O Estado mata e continua matando aos pouquinhos”.

Essa declaração foi publicada no relatório final da pesquisa “Vozes da Dor, da Luta e da Resistência das Mulheres/Mães de Vítimas da Violência de Estado no Brasil”, da qual servimos como coordenadoras. A equipe de pesquisa foi integrada por mais três lideranças dos movimentos de mães de vítimas da violência policial no Brasil: Edna Carla Souza Cavalcante, Nivia do Carmo Raposo e Rute Fiuza, como também as pesquisadoras Aline Rocco e Valéria de Oliveira. Portanto, a pesquisa foi desenvolvida por meio de metodologias participativas baseadas na educação popular, enfatizando o protagonismo de quem vive a violência de Estado cotidianamente.

Nossa pesquisa demonstra que a violência estatal não é “apenas” uma morte injusta e não é praticada apenas pela polícia. As narrativas de 20 mães de vítimas de 4 estados revelam uma sequência de negligência, criminalização e arquivamento sistemático praticada por um conjunto de instituições da segurança pública e do sistema de justiça. Essa tortura institucional obrigou quase todas as famílias entrevistadas a realizar suas próprias investigações dos casos em busca de evidências, testemunhas e até dos restos mortais dos filhos.

O relatório também revela um ciclo de impunidade que persiste no Brasil: várias mães descobriram que o policial que matou seu filho já tinha praticado outro homicídio, mas o caso foi arquivado ou o policial foi absolvido. Várias mães também denunciaram ameaças e intimidação após a morte da vítima, como abordagens aos filhos sobreviventes, invasões das casas dos familiares e até o desaparecimento da tia de uma vítima, a principal testemunha no caso. Uma mãe de vítima da Bahia denunciou ameaças da polícia contra protestos na comunidade: “Três dias depois eles desceram aqui na Gamboa, deram tiro para cima e falaram assim: ‘Vai fazer o seu protesto, e se a gente tiver que matar a gente mata mesmo’”.

Perante esse panorama de negligência e impunidade, todas as mães compartilharam dolorosos relatos de adoecimento físico e psicológico. Dentre as sequelas citadas nas narrativas estão: ansiedade, depressão, insônia, diabetes, AVC, pressão alta, úlcera nervosa, problema cardíaco, tireoide, osteoporose, câncer, mioma, cisto no útero, enfisema pulmonar, arritmia cardíaca e derrame.

A pesquisa também demonstra outros caminhos pela qual a violência estatal ameaça o bem-estar das famílias de vítimas para além do luto e sofrimento. Várias mães de vítimas contaram sobre a impossibilidade de trabalhar ou participar da vida familiar e comunitária devido a transtornos de saúde, crises de pânico e outras sequelas.

O Estado tem que ser responsabilizado pelas consequências da violência exercida pelos seus agentes. Os movimentos de mães no Brasil têm liderado a luta por políticas públicas de reparação integral para atender as mães e as famílias de vítimas, incluindo o projeto de lei 2.999/2022, radicado no Congresso.

Como demonstra nossa pesquisa, qualquer política pública de reparação deverá seguir as pautas e iniciativas das próprias mães, com o protagonismo de quem já sofreu a violência de Estado.

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