segunda-feira, outubro 7, 2024
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Saudade do caderno de caligrafia

Gosto de Clarice Lispector! Suas crônicas me tocam a alma, arrepiam os pensamentos. Há dias estou digerindo a seguinte frase: “tomar um pé no traseiro.”

Acredito que a assertiva tenha sido aventada de tanto ouvir o ingrato. De ingratos, o mundo está cheio. Há uma candura poética na atitude de ser bobo, de levar um pé no traseiro. Aqueles que atiram pés nos traseiros alheios não são bobos, muito menos atenciosos. Olham, mas não veem.

Para o senso comum, reconhecimento é diverso de julgamento. Nele o reconhecimento é valorativo, enquanto o julgamento é depreciativo. A vantagem de ser bobo, segundo Clarice Lispector, é a de ter uma boa-fé imensurável, não desconfiando das maledicências do outro; crendo, piamente, sem reticências.

Os textos de Clarice são elixires extraídos de palavras-pedras ou palavras-agulhas. Das vantagens de saber que levou um pé no traseiro, é estar tranquilo e em paz com o que fez. O ingrato não tem amizade sincera com ninguém, vive de olhos abertos, dorme de olhos abertos, censura e vigia os outros, sem descanso.

O ingrato atravessa caminhos tortuosos e escuros numa facilidade invejável, sendo craque nas rasteiras para passar na frente do bobo. E o bobo deixa, sabendo que o esperto é frágil e invejoso, em todos os sentidos.

Há, evidentemente, agruras em ser bobo. Sempre leva um pé no traseiro ou um punhal nas costas. Bobo chora em casa, mas se levanta no outro dia, com a consciência leve feito pluma. Por aqui, há uma vantagem em ser bobo: torna nossa vida menos tóxica e amarga.

Bobo não é desprovido de inteligência, não é idiota, nem tolo. Bobo é criativo. O risco de ser criativo é dar asas à liberdade. O bobo tem uma sensibilidade que encanta Deus e os anjos.

O esperto ou ingrato tem pacto com as forças negativas dos temporais, das inundações, dos incêndios… O ingrato tem memória de grão de areia. Não olha para a flor do jardim na primavera, não elogia ninguém. Vive sempre em dias nublados. É especialista na arte de julgar e apontar o dedo para as imperfeições dos outros. Não suporta discordâncias; não suporta ouvir o outro. Sabe de tudo; foi expulso da escola, porque sabia muito mais do que a professora.

Pesquisadores estadunidenses descobriram Machado de Assis e o fizeram um astro nas redes sociais e deslancharam corrida nas livrarias em busca de textos do nosso maior escritor. Estão descobrindo Clarice, que está se tornando fenômeno no hemisfério norte. Tenho o privilégio de conhecer textos de ambos, embora a ética mineira peça discrição, coisa de bobo, né!

Enquanto isso, muita gente fica só vendo pequenos vídeos de dancinhas ou de frases vazias nos aplicativos populares. As bibliotecas públicas pedem socorro! A Finlândia está proibindo o uso de computadores e dispositivos móveis nas salas de aula, para que os alunos possam experimentar a sensação de escrever seus próprios textos em letras cursivas e fazer cálculos matemáticos no lápis, sem ajuda de calculadoras.

Saudade do caderno de caligrafia, das aulas de redação e das disputas matemáticas! Não, não estou falando em retrocessos, estou falando em oportunidades de ativação da criatividade. A timidez boba de Clarice diante de câmeras e microfones escondia sua fúria criativa diante de uma folha em branco, uma caneta ou uma máquina de escrever. Coisa de bobo, mesmo…

Andreia Donadon Leal é mestre em literatura e doutora em educação. Escreve de Mariana (MG).

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