segunda-feira, outubro 7, 2024
Noticias

Os vinhos laranjas unicórnios de um produtor 'bandido'

No mundo do vinho brasileiro, o laranja é a cor mais quente. Já faz um tempo que o estilo apareceu por aqui, mas o frisson causado por ele não cessou. Talvez por sua estranheza (como assim tem vinho laranja? É feito de laranja? Spoiler: não); talvez por sua ancestral modernidade (comum na Grécia e na Roma antiga, na era das ânforas, foi resgatado e popularizado pelos produtores contemporâneos mais antenados); talvez apenas porque suas melhores versões são encantadoras mesmo.

Com o produtor de vinhos sul-africano Craig Hawkins não foi muito diferente. No dia em que provou um vinho laranja pela primeira vez, não entendeu muita coisa, mas soube na hora que aquilo era especial. Perguntou ao enólogo italiano Antonio Perino, da Ligúria, do que se tratava e ouviu: “É um branco feito como tinto”. Traduzindo: em vez de as cascas das uvas serem descartadas depois de prensadas, elas ficavam em contato com o mosto por um tempo durante a fermentação. O vinho laranja seria então um rosé ao contrário, um branco que ficou com as peles por mais tempo.

“Mas por que alguém faria isso?”, perguntou-se o sul-africano, para rapidamente entender que a resposta pouco importava: era isso o que queria fazer. Os laranjas são como brancos “anabolizados”: o contato com as cascas faz os vinhos ganharem complexidade, corpo e até taninos. Por isso mesmo são mais gastronômicos, versáteis e intrigantes. Foi questão de segundos para Hawkins se apaixonar, traçar um plano e perguntar a Perino se poderia usar seu apelido —Testalonga, o nome de um célebre bandido italiano— nos vinhos que faria no futuro. “Foi um encontro incrível, um grande momento. Eu chorei muito.”

O resto é história —ainda que você talvez não a conheça. Hawkins fundou em 2008 a Testalonga, em Swartland, região quente na África do Sul, ao norte da Cidade do Cabo. A vinícola se tornou uma das principais quando o assunto é laranja e fez o primeiro vinho nesse estilo do país, o que o colocou no cânone da literatura especializada (é o primeiro produtor relacionado a esse estilo no livro “On Natural Wine”, de Isabelle Legeron, considerado a bíblia dos naturais).

No Brasil, entre os aficionados do vinho laranja, Testalonga e Hawkins são gigantes. Tanto que por muito tempo foi preciso lutar por seus vinhos. Primeiro porque chegavam pouquíssimos por aqui, tanto em diversidade de rótulos quanto em unidades, o que fez serem tratados como “unicórnios” (aquelas garrafas raras e muito desejadas). A cada importação era comum que se fizesse pré-venda e que se criasse uma lista de espera.

Depois porque aos que encararam a pré-venda em 2022 foi necessário um exercício de paciência: as garrafas ficaram por cinco meses retidas na Receita Federal. Os vinhos da linha de entrada da vinícola, batizados de Baby Bandito, trazem o retrato de uma criança, feita pelo irmão de Hawkins, durante uma viagem ao Camboja. A imagem ficou superconhecida em todo o mundo (alô Instagram!) e vem acompanhada dos nomes dos vinhos, que são mensagens motivacionais como Keep on Punching (continue lutando, um chenin blanc branco), Chin Up (cabeça erguida, um cinsault), Follow Your Dreams (siga seus sonhos, um carignan) e Stay Brave (continue corajoso, um chenin blanc laranja).

Pela legislação brasileira, não é possível relacionar imagem de crianças ou algo que pertença à infância a bebidas alcoólicas, o que causou todo o imbróglio. O curioso é que aquela era a terceira importação desses vinhos e nada havia acontecido anteriormente. A solução foi colocar uma etiqueta preta com apenas o nome por cima do rótulo original.

A boa notícia é que agora, na mais recente importação, os vinhos Testalonga chegaram a 16 rótulos no Brasil, e o país cresceu tanto em importância para o produtor que recebeu sua visita no começo deste mês. Foi nessa visita, aliás, que Hawkins contou que essas mensagens motivacionais dos rótulos são ditas para ele mesmo, afinal o Bandito (fora da lei em italiano) é ele ao tentar fazer vinho com agricultura e vinificação de mínima intervenção na África do Sul, um país conservador quando o assunto é agricultura e enologia.

Os vinhos são produzidos nos 11 hectares da fazenda Bandits Kloof, que Hawkins toca com a companheira Carla desde 2008. Em 2015, passaram a dedicar-se exclusivamente ao negócio próprio e arrendaram outros seis hectares. Eles são bem grandes em chenin blanc, mas estão agora cultivando outras variedades brancas que se adaptam melhor ao clima quente da região, como grenache blanc, marsanne e roussane, do Rhône, além da grega assyrtiko e da espanhola macabeo. Entre as tintas, hoje ele tem pinotage, cinsault e carignan, mas devemos ver em breve mais mourvèdre, grenache noir e até a portuguesa trincadeira —o enólogo português Dirk Niepoort foi seu mentor e é um de seus heróis.

Familiarizada com a linha Baby Bandito, degustei 14 dos Testalonga que estão no Brasil pela Wines4U. É possível dizer que, além do forte apelo visual (Hawkins estudou artes), uma finesse pouco comum para os naturais é a principal característica, especialmente nos brancos. Destaco os dois pét-nats I Am the Ninja (R$ 289), floral e limpo, e I Wish I Was a Ninja (R$ 289), tostado e delicado; os Baby Banditos Keep on Punching (R$ 239), um branco quase salgado na boca, o Chin Up (R$ 239), um tinto com final defumado, o Follow Your Dreams (R$ 239), mais carnudo e com nota de cereja, e o célebre laranja Stay Brave (R$ 239).

Mais caros, os vinhos da linha El Bandito são um estouro, com destaque para El Bandito Cortez (R$ 415), que me deixou salivando para sempre, e o laranja topo de linha El Bandito (R$ 415), que é macio, redondo, o cúmulo do prazer.

Vai uma taça? Se você se animou com a ideia de provar vinhos sul-africanos, vão aqui algumas ideias de bom custo-benefício: o chenin blanc Polkadraai Chenin-Sauvignon Blanc (Toque de Vinho, R$ 89) e o Robertson Chenin Blanc (Vinci, R$ 85), que são levinhos, frescos e vão dar uma aliviada nesse calor; e o Nederburg Winemasters Shiraz (Casa Flora, R$ 126), se você gosta de um tinto mais robusto e com um toque de especiaria.

source

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com