segunda-feira, outubro 7, 2024
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Clayton Nascimento monta espetáculo sobre a história do Brasil que queremos esquecer

Há pouco mais de um mês, assisti ao espetáculo “Macacos”, encenado pelo ator Clayton Nascimento, durante o 6º Festival Melanina Acentuada, em Salvador, sob a curadoria de Aldri Anunciação, também ator, diretor e dramaturgo premiado. A peça em questão, escrita por Nascimento e publicada em livro pela editora Cobogó (2023), é um monólogo em nove episódios e um ato e tem três horas de duração. Posso dizer, com a máxima certeza, que é o espetáculo mais impactante assistido por mim nos últimos anos.

Mas, afinal, do que se trata “Macacos”? O título pode se referir a uma espécie animal ou a injúria racial, crime de racismo. E são essas coisas juntas e misturadas e algumas outras a mais. E a resposta remete também a pensar numa “dramaturgia-denúncia”, elaborada pelo ator-autor de 2015 a 2021 e que é, na verdade, a forma encontrada por ele para deixar de sentir tanta dor.

Nascimento expõe, através do papel-memória, as vozes-histórias que reverberam em sua mente, como algo perfurante e aterrador: o de ter experimentado uma das maiores violências que um jovem homem negro pode passar na vida.

Em um desses não raros dias fatídicos de São Paulo, para quem é pobre e negro, Nascimento foi confundido com um ladrão, embora estivesse em lugar de vítima, no coração da avenida Paulista, a via mais mercantil do país. A confusão racista não bastou.

Além de ser espancado pelo próprio casal de bandidos, que verdadeiramente o assaltava, se juntou um bando de loucos, pedestres, que acreditara na versão falsa do casal, não na dele. Para piorar, teve seus pertences pessoais saqueados, furtados e destruídos, em reforço ainda maior de sua humilhação e de sua dor —tudo isso na presença de testemunhas, que aceitaram a acusação de seu crime por causa de sua cor. O resultado foi um trauma profundo, uma imersão no medo e uma paúra de sair à rua por temer o pior.

Meses depois de puro estado de inação intelectual e física, prostrado na cama, Clayton Nascimento resolveu criar a narrativa de “Macacos”, título que evoca um dos xingamentos sofridos por ele durante a agressão que sofreu —e lembra as cascas de banana jogadas nos campos de futebol.

A peça, premiada e necessária, tem rodado o mundo, indo até à Rússia, como uma espécie de espetáculo-denúncia. Nascimento traz para o palco, eletrizando o público, a história de um país desigual, racista, homofóbico, estuprador, assassino. O pente-fino, a partir da vida pregressa da nação brasileira, se atualiza com os fatos mais recentes, ainda na pauta do racismo e do extermínio e criminalização da juventude negra.

Ainda pareço ouvir sua voz ecoar, na meia luz do tablado, quando escancara o nosso desconforto histórico: “Se fizermos uma rápida divisão entre 388 de escravidão, divididos por 521 anos de Brasil, teremos cerca de 69% da nossa história toda pautada em escravidão. Se dividirmos cerca de 40 anos de democracia por 521 anos de Brasil, teremos apenas 7% da nossa história pautada em democracia.”

Lúcido artisticamente e dominando a cena, Nascimento viu, ainda recuperando o fôlego, uma entusiasmada Fernanda Montenegro se erguer de sua cadeira e lhe dizer, com muita emoção brilhando nos olhos: “Um fenômeno. Você é um fenômeno. Espero que você faça essa peça para sempre. Até ficar bem velhinho!”

Este é um espetáculo sobre um Brasil que queremos esquecer, ter na conta de um passado superado. E “Macacos” fala de tudo isso, aborda na cena artística, o relato de um homem-preto em busca de respostas, por vezes pontuando a trajetória de vidas como de Machado de Assis, Elza Soares e Bessie Smith. Assim como não deixa para trás dados aterradores, sobre estatísticas de jovens negros presos ou executados pela polícia militar até hoje.

O preconceito do brasileiro é abordado em cena a partir do relato de um homem preto que busca superar o racismo que rodeia seu cotidiano e a história de sua comunidade através do teatro.

No último episódio de sua monumental apresentação, Clayton Nascimento deixa “um recadinho” para o Brasil, pela atenta plateia que o assiste: “Se você acha que sim ou se você acha que não, lembre-se de avisar isso para o seu pai, para a sua irmã, para a sua tia, para o seu filho, para o seu vizinho, para o seu irmão, para o seu crush, para a sua professora, para a sua dentista, avisa para o seu médico e para o seu aluno. Pede para eles deixarem essa gente que gosta de hip hop, rap, funk, samba, soul e blues em paz. Peça para eles deixarem essa gente que inventou a feijoada e a caipirinha em paz. Peça para eles deixarem essa gente que não tem classe em paz.”

Blackout. E cai o pano, que, aliás, nem tem.


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