domingo, outubro 6, 2024
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Peterson virou guru da ultradireita liberando impulsos masculinos destrutivos

Jordan Peterson é o maior fenômeno da influência pela autoajuda de que se tem notícia e é ainda mais relevante por ter redefinido o curso da filosofia moral, que se tornou diferente e muito mais popular. Para milhões de pessoas, filosofia moral é, simplesmente, Jordan Peterson. Em paralelo, é um dos intelectuais de maior prestígio na ultradireita, que lhe patrocina generosamente.

Antes de se tornar celebridade, o ex-professor da Universidade de Toronto foi um pesquisador de impacto na área da psicologia da personalidade, angariando mais de 10 mil citações.

Ele também foi um dos primeiros acadêmicos a postar suas aulas no YouTube, onde se destacou pelas análises junguianas de fábulas e outros textos alegóricos, pinçadas de seu primeiro livro, “Mapas do Significado”, de 1999. O livro faz um contraponto ao muito popular “A Psicanálise dos Contos de Fada”, de Bruno Bettelheim, de orientação freudiana. Sai o sexo, entra o mito.

O pioneirismo digital, aliado à paixão e articulação, renderam-lhe seguidores, mas a escala era limitada. O ponto de virada se deu com a aprovação do projeto de lei canadense C-16 em 2016, que “visa proteger as pessoas da discriminação, na jurisdição federal, para que não sejam alvo de propaganda de ódio, como consequência de sua expressão de gênero”.

Peterson opôs-se veementemente ao PL e passou a vocalizar isso em debates com alunos enfurecidos, postados no YouTube por ambos os lados, como exemplo da irracionalidade de sua nêmesis. Isso dividiu o campus da universidade e, como fogo na estiagem, a internet.

Naquele momento, estava em jogo a expansão das políticas identitárias, que atualmente estão em refluxo nas empresas e universidades americanas. O timing favoreceu Peterson, que astutamente deixou a clínica e a universidade para se dedicar à campanha de divulgação do que viria a ser seu maior sucesso: o livro “12 Regras para a Vida”, de 2018.

A regra fundamental é superar as forças que levam à inação e causam ansiedade, o que ele promove por meio de discursos de autoridade, como em seu bordão mais famoso: “Arrume seu quarto”. Peterson encarna o arbítrio paterno, que acredita estar desaparecendo das famílias e assim levando ao declínio da confiança masculina.

O interlocutor privilegiado de Jordan Peterson é o personagem típico das comédias americanas sobre iniciação sexual: o “loser”, moldado à imagem de um pai fraco —alegoria indissociável à da mãe autoritária, cuja dominância plantaria a semente de sua desadaptação social e sexual.

Esses são os fatos e o contexto narrativo. Já o que realmente importa os transcende em muito.

O fenômeno mais relevante que a trajetória de Peterson revela é a relação profunda, mas até aqui ainda não formulada, entre autoajuda, filosofia moral e discurso identitário.

Um dos reflexos das políticas de reparação das desigualdades sofridas pelos grupos minorizados foi a ascensão de um neoidentitarismo masculino, hétero, judaico-cristão e branco (nessa ordem de importância), que não é sobre a manutenção de poderes e privilégios, mas sobre o oposto.

Não há dúvidas de que esse é o grupo dos historicamente favorecidos. Mas é preciso considerar que o senso de aceitação entre os mais jovens (com menos de 30 anos) é cada vez mais determinado pelo Klout (impacto sociodigital) e que hoje, no Ocidente rico —e, em menor grau, nos países de renda média— nada é tão “out” quanto um moleque branco, introvertido e hétero, que cresceu em um lar de cristãos ou judeus não praticantes.

Do mais, em linha com o aumento da audiência de Peterson, a proporção de homens jovens entre os que nem trabalham nem estudam atingiu níveis recordes em muitos desses países. No Reino Unido, por exemplo, é a maior dos últimos dez anos. A taxa supera significativamente a feminina e é agravada pelo fato de mais de 60% desses rapazes nem sequer estarem procurando emprego. “Percebemos uma enorme subida nos problemas de saúde mental dos homens jovens”, diz Laura-Jane Rawlings, que liderou a pesquisa originadora desses dados.

O fenômeno gera impactos societários. Focando o mesmo grupo de países (Reino Unido), um estudo abrangente sobre percepção social de diferentes grupos étnicos, nacionalidades, gêneros e faixas etárias, envolvendo 48 pesquisas independentes, mostrou que “homens jovens brancos são vistos como o pior grupo étnico, de gênero e etário nos cinco critérios negativos — e o segundo pior em quatro dos cinco traços positivos”.

A sensação de exclusão entre os sem carisma, garra ou propósitos descola-se parcialmente do IDH, que pauta as análises mais objetivas sobre desigualdade, e leva à multiplicação dos ressentidos, principal fonte de “leads” para a captação de Peterson, que, como típico pai bravo, defende seus filhos na esfera pública como uma fera.

O pleito inicial é ser notado. A crítica é numérica: como pode tanta atenção à comunidade trans, enquanto a nossa azáfama segue invisível? —mulheres despertam amargura, mais do que qualquer outro sentimento, e a questão racial revela-se bem menos relevante do que já foi.

Os princípios de Peterson são como os de treinamentos militares em época de guerra. Eles têm menos a ver com qualquer técnica que com o reforço do senso de sobrevivência e da conversão de tensões, angústias e frustrações em impulso selvagem para subjugar o oponente.

Assim como esses treinamentos, que gradualmente deixam de ocorrer conforme as batalhas se sucedem e matar para não morrer se naturaliza, a autoajuda do professor canadense é um mediador provisório na metamorfose do grito internalizado em externalização, que vai perdendo importância conforme os garotos vão ficando mais à vontade para expressar toda sua agressividade reprimida, em uma espécie de terapia catártica da timidez, a qual traz como bônus o fato de lhes fazer temidos e noticiados. Zuckerbergs sem império tornam-se temíveis “red pills“.

Peterson comunica essa transição de maneira performativa: com o tempo, ele vai deixando de encarnar tanto a figura paterna para se dedicar às diferentes pautas ideológicas da nossa época, até despontar como um negacionista climático, que vê o pensamento judaico-cristão como esteio moral do Ocidente, acredita que a civilização está sendo ameaçada pela ideologia woke e assim brada por ordem, ecoando a pregação original de maneira menos personalista e mais escalada.

O resultado é a sua ascensão ao panteão do establishment conservador, onde passou a ser tratado como um dos pensadores mais importantes deste século; um Olavo de Carvalho com neurônios.

A autoajuda é uma linha de psicologia sem analista, forjada sobre a necessidade de fortalecimento do ego para galgar os andaimes corporativos, em estruturas organizacionais altamente hierárquicas. Ela encontra ampla ressonância porque se apoia em uma intuição bem estabelecida na mente das pessoas: que é necessário um mediador transitório para se chegar a novo platô de acoplamento com a realidade. Uma vez alcançado esse novo patamar, a bengala intelectual torna-se dispensável, o que justamente explica por que os bem-sucedidos não consomem autoajuda, mas soft-budismo e outras psicotecnologias.

À medida que desempenha esse papel, a autoajuda faz o mesmo em escala societária, onde passa a representar o elemento de transição na formação do pensamento moral do século 21. Este é o entendimento-chave que você deve salvar no hipocampo para o entendimento da questão.

O raciocínio que aplico aqui não é novo. Quando Max Weber diz que o protestantismo é uma etapa na transição para o capitalismo moderno, ele essencialmente argumenta que a religião é um mediador transitório. Nesse caso, a tese é controversa, já que a religião se tornou uma força autônoma que não dá sinais de desaparecimento e sua recente perda de relevância no Ocidente não advém de redefinições do capitalismo. Mas o princípio é válido.

A filosofia moral da nossa era é, cada vez mais, autoajuda para além do domínio do eu. Seus dois paradigmas centrais são o dilema do prisioneiro e o problema do bonde, os quais estão presentes nos mais bem avaliados best-sellers do ramo, onde levam a apontamentos para o reforço do ego.

Do primeiro, deriva-se a estratégia mais famosa para a maximização simultânea da utilidade esperada da vida social e da justiça: inicie suas interações de forma generosa e, a partir daí, aja com reciprocidade absoluta em relação aos seus parceiros e interlocutores (essa estratégia é conhecida como “tic for tac”). Não sei se é sintoma histórico ou bom senso, mas sinto que o princípio é muito bom.

Do segundo, emerge a máxima de que emoções personalistas podem obstaculizar o progresso social. Compreendo que sacrificar um loser para salvar outros cinco está no melhor interesse da sociedade, mas se titubear, não serei capaz de agir; portanto, devo fazê-lo antes do arrebatamento pela compaixão. É a tal ideia de que somos intrinsecamente enviesados, que é verdadeira, mas tão facilmente conduz a políticas públicas questionáveis, como no famoso caso dos nudges de Richard Taller e na tese de que IAs devem tomar as decisões difíceis.

Peterson encampa essa passagem da autoajuda para o discurso moral com aspirações universalistas —do varejo para o atacado— porque é muito mais inteligente do que a média e tem um repertório muito maior. Sei que é difícil engolir, mas não é a falta de inteligência que define o banco em que se sentam os ideólogos, mas sim os componentes não verbais da personalidade, como o interesse pelo diferente (abertura à experiência) e a tolerância a assimetrias.

A transição à alt-right possui função projetiva em um bem-sucedido projeto de liberação de impulsos destrutivos de moços que vivem acuados desde o início da adolescência, quando se sentiam inferiorizados por outros jovens, mais bonitos, sociáveis e sexualmente desinibidos.

Seu conforto é seu perigo, emergindo do acolhimento em grupos que vociferam injúrias em uníssono. Já seu trunfo maior é a passagem das 12 regras do comportamento responsável para as 12 regras da vida secreta da sociedade, o que de fora reduzimos a paranoia e conspiração.

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