domingo, outubro 6, 2024
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Carro velho precisa de mecânico

Uma vez ao ano vou à ginecologista e faço exames de sangue, mamografia, densitometria, ultrassonografias. No dia 2 de setembro, após ver meus exames, ela disse que está tudo bem.

“Só o ácido úrico que está alto, porque você fica muito tempo sem comer. Você precisa ir a um cardiologista”.

Marquei a consulta com o cardiologista para o dia 18 de setembro.

“Você dorme bem? Demora para pegar no sono? Quantas vezes acorda no meio da noite para ir ao banheiro? Quando acorda, fica ruminando sem conseguir dormir?”

“Sempre tive insônia, desde criança”.

“Seus cabelos caem muito?”

“Sempre caíram”.

“Você faz exercícios? Faz musculação?”

“Caminho na praia e faço exercícios na Academia de Terceira Idade.”

“Você veio aqui em 2017 para fazer uma avaliação cardiovascular antes de uma colonoscopia. Você tem síndrome do intestino irritável?”

“Tenho.”

“Você toma antidepressivo?”

“Nunca tomei. Tomava Lexotan para dormir, mas parei em março de 2020.”

“A depressão é química, ela não desaparece.”

“Mas e os efeitos colaterais dos antidepressivos?”

“Todos os remédios têm efeitos colaterais, até a aspirina. Tem que pesar os custos e os benefícios. Tem gente que parece que está muito bem e se suicida.”

Apesar de pesquisar envelhecimento há mais de 30 anos, fiquei chocada com o que o médico disse.

“Tudo piora com a idade. É como um carro velho. Precisa de um mecânico e de manutenção constante. Carro velho tem que ter um mecânico, não pode ter vários. Tem que ter um mecânico de confiança e fazer a revisão das peças três vezes ao ano.”

Quando ele disse “carro velho”, lembrei-me do meu pai gritando, quando eu era criança: “Você é uma bosta!”. E chorei.

O médico mudou de tom.

“E qual o problema de se achar uma bosta? Quem se acha uma bosta quer melhorar, crescer, evoluir. Quem se acha uma maravilha não faz nada para melhorar.”

E me contou duas “porradas” que mudaram a sua vida. Durante a pandemia, apesar de ter conseguido salvar vidas de muitos pacientes, não conseguiu salvar a vida do seu melhor amigo. E, recentemente, descobriu que tem um problema no coração e precisa fazer uma cirurgia de alto risco.

“Você quer envelhecer bem? Tem que fazer coisas que não gosta de fazer.”

“Como assim, coisas que não gosto de fazer? Não é exatamente o contrário? Fazer só as coisas que gosto de fazer?”

“Não, você tem que ter desafios, não pode ficar só fazendo as coisas de que gosta. Precisa ter desafios para crescer.”

“Vou escrever uma coluna para a Folha contando que o meu cardiologista disse que sou um carro velho e decrépito.”

“Pode escrever, mas eu não disse que você está decrépita. Você está muito bem. Sabe aqueles carros antigos bem conservados?”

“Já que você é meu mecânico, o que o carro velho precisa fazer de manutenção?”

“Só um teste ergométrico e voltar aqui em dezembro.”

“Como meu mecânico, você acha que tenho que tomar antidepressivo?”

“Não, você tem uma cabeça muito boa, é muito evoluída. Mas vamos acompanhar.”

Saí da consulta e fui caminhar na praia e fazer exercícios no parquinho. Não consegui voltar para casa e terminar de escrever o relatório da minha pesquisa sobre “Envelhecimento, autonomia e felicidade”. Ainda estava muito abalada por ter descoberto que sou um carro velho que precisa de revisão do mecânico três vezes ao ano.


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