domingo, outubro 6, 2024
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Precisamos acabar com a carrocracia em São Paulo

Escrevo para vocês de um lugar de privilégio: o banco de motorista do meu carro, onde achato as nádegas quase diariamente. Um lugar de privilégio, mas não tanto, já que o trânsito está parado a ponto de eu esboçar esta coluna.

De repente, a fila anda uns poucos metros e eu avisto, na minha lateral, o estádio do Pacaembu. Sob o espaço exíguo da marquise, se empilham dezenas de pessoas: crianças com bicicletas e patinetes, adultos bebendo cerveja, adolescentes conversando, um grupo de garotas dançando com um aparelho de som.

A praça Charles Miller, logo à frente da marquise, que funciona como estacionamento, está praticamente vazia, só uns poucos carros ocupando uma ou outra vaga. Perto dos veículos, o verde também não tem vez: só surge na grama das rótulas centrais, que parecem estar ali, antes de mais nada, para organizar o fluxo dos veículos. Árvores, só nas laterais. E não muitas.

Olhando para essa praça, que mais parece um latifúndio de asfalto, pintada com faixas brancas para a demarcação das vagas, tenho a percepção cristalina de que vivo em uma cidade feita para os carros e não para as pessoas. Fato que confirmo ao olhar para a rua bem asfaltada em que estou, diferente da calçada na minha lateral.

Penso em algumas ruas do meu bairro, onde há vários estacionamentos e nenhuma praça. Sequer bancos para o pedestre estacionar as pernas. Também lembro da quantidade discrepante de estacionamentos em outros lugares da cidade, se comparada a quantidade de áreas verdes ou áreas públicas de lazer.

Esse absurdo tem nome: carrocracia. A supremacia dos carros nos ambientes urbanos, uma política pública voltada para a manutenção de uma infraestrutura que favorece o uso das quatro rodas.

E, no caso de São Paulo, nem o motorista ganha com isso, já que seu privilégio também corresponde à sua ruína: quanto mais espaço para carros, menos áreas verdes e mais poluição. E isso numa cidade desesperada por ar puro, com uma das piores qualidades atmosféricas do mundo.

A cultura do carro está tão arraigada no paulistano que choramos pela emissão de carbono dentro do emissor de carbono. Sim, carros a diesel e a gasolina estão diretamente ligados ao aquecimento climático. Não à toa Paris triplicou a taxa de estacionamento para as SUVs e várias cidades europeias vêm restringindo a circulação de certos tipos de veículos.

Carros sempre vão existir, e é legítimo o desejo de ter um. A questão é a centralidade que damos para esse tipo de transporte. Na Índia, o carro para pra vaca passar. Em São Paulo, a vaca –se houvesse vaca– pararia pro carro passar. A bicicleta para pro carro passar. A criança para pro carro passar. No culto de adoração ao deus Carro, os sacrificados somos nós.

Mas peraí, quem sou eu para falar isso, sentada no banco do motorista? Uma cidadã que também anda de metrô, a pé e de bike. Que adoraria contar com mais segurança nas ciclofaixas. Que adoraria contar com um transporte público mais ágil e soluções de mobilidade ativa. Que adoraria pisar mais no verde. Desacelerar. Viver em uma cidade que valoriza mais a pessoa física do que a jurídica.

E antes que alguém sugira transformar nossos desertos de asfalto em parques privatizados: não se resolve o excesso de cancelas com cancelas de outra categoria.


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