Para mim e para minha mãe, tutu de feijão estabeleceu ritual com gosto de festa de chegada
Moro há um ano e meio em Portugal e ontem foi a primeira vez que fiz tutu. Sabes o que é tutu? Tritura o feijão cozido com um pouco de farinha de mandioca e deixa engrossar um bocadinho. Vai se transformar num creme. Depois, preparas uma linguiça (aqui chamam de salsicha fresca) com uma boa quantidade de cebola e despejas tudo por cima do creme. O prato é muito simples, muito barato e delicioso.
Mas o paladar tem particularidades que não se encontram apenas na boca. O que se quer nem é o feijão, a farinha ou as salsichas. É conforto. Uma lembrança que nos embale com carinho quando o chão parece rachado, como se a qualquer momento a terra, por puro capricho do seu próprio paladar, nos fosse engolir inteiros.
A minha tia Olga fazia o melhor frango ao molho pardo do mundo. Quando ela morreu, nunca mais comi algo que se aproximasse do que só ela sabia fazer. E vê, o sangue que é o elemento principal da receita. Se não houver confiança nas mãos de quem prepara o prato, transforma-se em veneno na boca e indigestão na barriga. Fato é que ela sempre preparava esse frango quando eu voltava para Minas. E aquele era um gesto de carinho, que me dava um enorme prazer. Sentávamos à mesa e partilhávamos histórias; algumas viraram memórias de um tempo feliz.
A minha mãe começou a resmungar, fazia cenas de ciúmes por causa dessa relação entre eu, a tia e o frango com molho pardo. Então um dia escolhi meticulosamente pedir que ela preparasse para mim um tutu. “Porque é o melhor do mundo”, disse-lhe. Sinceramente? Tal como eu, a minha mãe não tem a menor vocação para a cozinha e, na minha cabeça, o tutu era algo tão simples que seria absolutamente impossível ela falhar.
Foi assim que, durante anos, ao voltar à casa de minha mãe, passei a ser recebida com tutu. Às vezes a farinha empelotava, mas quem é que se importa? O tutu estabeleceu um ritual entre nós com gosto de festa de chegada. Com gosto de casa. Até eu escrever essa confissão minha mãe nunca soube que o tutu era uma saída. A solução improvisada para um conflito que existia dentro dela. Era uma bandeira de paz. Ontem comi de olhos fechados, sentindo o gosto do lar, o cheiro das coisas boas que já vivemos e isso, bem… Isso foi maravilhoso.
Érica Alcântara Araújo, 47, é mineira de Belo Horizonte e, atualmente, vive em Lisboa. Filósofa, publicou um livro de poesia, participou em uma publicação de um seminário de filosofia e agora aguarda pela resposta do Prêmio Leya, para o qual enviou seu primeiro livro de contos literários.
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