domingo, outubro 6, 2024
Noticias

'Museu' se diverte com as fronteiras da arte em livro quase sem palavras

Existe uma pergunta que dá pano para manga —afinal, o que é a arte e qual é o seu objetivo?

É uma mera representação da realidade? Uma manifestação do belo? Um passatempo, entretenimento, forma de leveza? Um campo de batalha no qual forças entram em choque? A desobediência das regras e das normas vigentes? A implosão do que está preestabelecido ? Uma maneira de interferir na realidade? Uma experiência estética e ponto final?

A ideia aqui não é dar respostas definitivas, mas um livro recém-lançado no Brasil atua de maneira interessante nessa conversa. “Museu”, dos espanhóis Javier Sáez Castán e Manuel Marsol, acaba de sair pela editora Barbante.

A obra, uma narrativa visual com pouquíssimas palavras, foi premiada em 2020 na Feira do Livro infantil de Bolonha, na Itália, o principal evento mundial da literatura infantojuvenil. Na história, somos capturados por uma teia inteligente que mistura artes plásticas, literatura e toques de cinema para investigar a natureza e as fronteiras da arte.

Tudo começa já na capa, onde um homem de costas dirige um veículo enquanto seus olhos aparecem refletidos no espelho do retrovisor. A cena está enquadrada por uma espécie de moldura, como se a imagem fosse de fato um quadro. Na parte de baixo, há uma dessas plaquinhas de exposição, na qual está o título do livro: “Museu”.

A partir daí, acompanhamos a jornada desse personagem em imagens cheias de referências a outros artistas. Primeiro, o carro quebra e para diante de um casarão misterioso —artifício que já foi usado diversas vezes em filmes de terror e suspense, como nos clássicos “The Rocky Horror Picture Show” e em certa medida até em “Psicose”, mas também em longas mais comerciais e clichês como “A Casa de Cera”.

Voltando ao livro, em seguida descobrimos que a tal casa é um museu. E é lá dentro que vemos pela primeira vez o rosto do protagonista, que vinha sendo retratado até então como um homem sem face, de chapéu e roupa social, como se fosse um personagem masculino de uma das telas de Edward Hopper ou a figura do quadro “O Filho do Homem”, de René Magritte. Aliás, o surrealismo de Magritte está presente da narrativa aos pequenos elementos, entre eles os olhos que surgem espalhados pelas imagens, como se estivéssemos sendo observados a todo instante.

As coisas mudam de rumo quando o homem percebe que um dos quadros do museu exibe exatamente o seu carro estacionado lá fora, na frente do casarão. Então tudo se mistura. Um pássaro que estava pintado dentro de uma gaiola numa das obras, por exemplo, de repente surge ao lado do protagonista. Quando volta a olhar a tela, ele se dá conta de que a imagem mudou e que agora a jaula aparece vazia, sem a ave, como se ela tivesse saído da pintura.

O mesmo ocorre com uma mulher e um tigre, que se torna foco de tensão e corpo do próprio museu, a ponto de arte e realidade se mesclarem de maneira inseparável. Aliás, é sempre bom ter em mente que estamos lendo um livro, o que faz com que essa sobreposição e esses cruzamentos de leituras fiquem ainda mais complexos.

“Museu” é desses títulos que não têm somente um final surpreendente, mas trazem surpresas em cada página. Mais do que uma sequência visual de fatos, a obra brinca com as fronteiras da arte, os impactos dela e as próprias definições do que é o fazer artístico.

Não é à toa que o mundo se transforma quando o personagem entra num museu. Um livro, um quadro, uma peça de teatro, um filme, uma música são faíscas e farpas que produzem —ou talvez devessem produzir— a desordem, o desequilíbrio, o flerte com a irracionalidade e um movimento capaz de gerar novas conexões e organizações.

Ao terminar de ler a obra, pode ser que a gente levante os olhos e comece a enxergar um tigre bem no meio da sala.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

source

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com