domingo, outubro 6, 2024
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A era da impaciência e o retorno do misticismo

Drogas sintéticas, apostas online, pornografia, guloseimas ultraprocessadas, influenciadores hedonistas, memes, mensagens, fofocas. A oferta de elementos que perturbam a atenção e dificultam o autocontrole nunca foi tão copiosa.

Na arena política, para lidar com os efeitos colaterais dessa hiperdisponibilidade, debate-se regular as bets, proibir celulares em escolas, disciplinar o acesso a certos medicamentos e alimentos, bem como a sua propaganda. Nações avançadas discutem até onde deveria ir a liberalização das drogas.

No terreno da conduta pessoal, a pandemia de distratores estimula, como resposta, ideias e práticas que remontam ao misticismo claustral. Afinal, o sacolejo do smartphone abala o equilíbrio de muita gente, mas não o de um monge.

As circunstâncias eram outras quando, de 590 a 604, pontificou Gregório, o primeiro papa oriundo do monasticismo. Os desafios à igreja e à população romanas estavam mais para a privação e o risco de aniquilação do que para a abundância.

Talvez por isso a paciência, tema de uma das suas homilias, traduz-se como a arte de tolerar desaforos e os mais ásperos reveses da vida e, ainda por cima, amar os autores das pancadas. Quem remói desejos de desforra, mesmo que não a pratique, destrói a verdadeira paciência, a que reside no coração e conduz ao aprendizado, segundo esse doutor da igreja.

“Pela vossa paciência ganhareis posse das vossas vidas”, diz Jesus aos apóstolos logo após adverti-los das desgraças por vir. Esse trecho do evangelho de Lucas, abordado na pregação de Gregório, dá uma pista para entender a revalorização do ascetismo nos dias de hoje, seja em vertentes religiosas, seja em apropriações agnósticas.

A paciência gregoriana não se confunde com um estado de espera. É um mergulho consciente e concentrado em atividades mentais e físicas de formação e preparo interior. A recomendação de não se vingar dos algozes e de perdoá-los ensina que existe uma resposta mais apropriada para as ofensas.

Os cristãos, como Gregório, almejam a salvação da alma após a morte. Mas a ideia por trás de uma resposta apropriada a um agravo pode muito bem ser a da Justiça, que repele a lei de Talião em nome de formas civilizadas de aferir as culpas e distribuir as penas. No plano individual, a ascese promete interpor um mediador sagaz entre nossos impulsos primitivos e a nossa reação final.

Tomar as rédeas da própria vida em meio à chuva de meteoros que nos distrai ou nos machuca requer um disciplinamento para, muitas vezes, recusar o caminho mais prazeroso e suportar dissabores em nome de uma recompensa futura e incerta —que pode ser a graça divina, para o crente, ou uma aposentadoria confortável e saudável, para o materialista previdente.

O domínio das emoções pode fazer a diferença entre a vida e a morte. Experimentos da pesquisadora e oficial da reserva da PM paulista Tânia Pinc sugerem que técnicas de modulação da frequência cardíaca através do controle da respiração —o que lembra exercícios de monges— melhoram o desempenho de policiais em abordagens de suspeitos armados.

No best-seller “A Geração Ansiosa”, que impulsiona a discussão sobre restringir o acesso de crianças e adolescentes às redes sociais, o psicólogo norte-americano Jonathan Haidt, ateu, dedica um capítulo a elogiar práticas herdadas de tradições religiosas, como a meditação silenciosa, a sacralização do tempo e do espaço, os movimentos sincrônicos e coletivos dos cultos e o incentivo ao perdão. Haidt as considera antídotos contra aspectos deletérios das novas tecnologias.

A conectar todos esses pontos, aparece a ideia de que o indivíduo alcança mais felicidade, conforto e instrução se relativizar a sua importância no mundo, harmonizar-se com a ordem cósmica, aceitar o inevitável, ignorar as ilusões do pensamento e concentrar a atenção no que é importante e pode ser modificado pela sua ação diligente e tempestiva.


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