domingo, outubro 6, 2024
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O populismo não tem ideologia

Em geral, o transporte é uma agenda de destaque nas eleições municipais. Curiosamente, boa parte do debate nos dois últimos pleitos municipais tem se concentrado no subsídio ao transporte público. Em 2020, a grande discussão foi o tamanho do subsídio e, em 2024, estão sendo a tarifa zero e a eletrificação da frota.

A tarifa zero é muito atrativa politicamente. Os mais pobres essencialmente reduzem seus gastos; os mais ricos, em geral não usuários do transporte público, não poderiam ser contra essa caridade com os pobres que usam ônibus; além disso, de quebra, gastam menos com seus funcionários. Sendo assim, somam-se apoios –e votos– de todos os lados. Por fim, é uma política relativamente fácil de se implementar, ao contrário de outras, como a construção de corredores de ônibus ou aquelas relacionadas ao próprio avanço tecnológico.

Não surpreende que os governantes dos cem municípios que implementaram a tarifa zero Brasil afora representem todo o espectro ideológico da direita à esquerda. Afinal, existem justificativas ideológicas para os dois lados: a transferência das atividades para o setor privado (à direita) ou a transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres (à esquerda).

Sem dúvida, o preço da tarifa afasta quem utiliza o transporte público, mas um possível subsídio pode atrair tanto usuários de carros e motos, como cidadãos que se deslocam a pé ou de bicicleta. Se reduzir o tráfego fosse o objetivo da tarifa zero, seria melhor cobrar uma taxa por congestionamento dos automóveis. Há poucas evidências para o resultado da tarifa zero nesse sentido.

Os defensores de tal política se concentram, principalmente, no seu aspecto distributivo, uma vez que a maioria dos usuários é de pessoas pobres. Porém, ao distribuir renda em um serviço público, acabamos transferindo também para os mais ricos usuários do transporte público ou que pagam o transporte de seus funcionários, que não deveriam participar desse programa. Adicionalmente, deixamos de fora os mais pobres que se deslocam a pé ou de bicicleta.

Outro argumento é o de que a pobreza é mais ampla e que estaríamos privando os cidadãos do seu direito de ir e vir. Se é esse o ponto, já temos uma política para isso, o Vale Transporte, cuja limitação é porque ele alcança apenas o mercado de trabalho formal. Se queremos melhorar a vida das pessoas, devemos direcionar o recurso para elas, não para as empresas.

Outro argumento costumeiro é que essa política “custa pouco” ou que “a conta fecha”. Essa justificativa é frequente nos subsídios de baixo custo para a maioria da população, mas que proporcionam grande retorno para os beneficiários. É o que denominamos de “populismo fiscal”. Por isso, quem se beneficia com os subsídios consegue facilmente realizar suas ações de lobby para nunca perder privilégios. Assim, não surpreende que os donos das empresas de ônibus estejam entre os grandes entusiastas dessa política.

A luta pela tarifa zero tem se misturado com a luta pelo transporte público. E ela propõe uma divisão dos recursos dentro do próprio setor de transportes, aumentando o gasto em custeio (ou consumo) e reduzindo o investimento. Com uma das menores taxas de investimento do continente em relação ao PIB, seguimos propondo políticas que privilegiam o consumo. É a vitória do populismo fiscal sobre o crescimento sustentável, que independe da ideologia e se escora nas promessas feitas para vencer uma eleição. No fim, porém, sempre resta a esperança de que o debate eleitoral ajude a focar nos problemas reais dos eleitores.


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