domingo, outubro 6, 2024
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A volta das que não foram

Confesso que não queria falar sobre a trend das “trad wives” –as influenciadoras que se vendem como esposas tradicionais nas redes sociais. Primeiro, porque esse tipo de conteúdo não é novidade nem moda passageira. Segundo, porque minha mãe, que durante a maior parte da vida desempenhou o papel de esposa tradicional, me ensinou a não “bater palma para maluco dançar”. Minha mãe provavelmente não sabe que essa expressão caiu em desuso por ser psicofóbica.

Quando nos damos conta de que essas influenciadoras têm plena consciência do que estão fazendo, tais palavras podem parecer ainda mais inadequadas. No entanto, diante do avanço do retrocesso, me permiti resgatá-las para trazer à tona o fato de que mulheres que se prestam a esse papel podem pagar um preço alto, que envolve riscos à saúde mental.

Não digo isso pela ótica de um feminismo extremista que fragiliza ou vilaniza mulheres que optam pela vida doméstica, já que elas têm esse direito. Basta olhar para a gênese dessa “trend”, no século 19. No final da Revolução Industrial, a família nuclear burguesa se consolidou como peça-chave da sociedade capitalista. Naquele modelo, o homem assumiu o papel de provedor e a mulher assumiu o de esposa tradicional.

O mito da mulher que encontra a satisfação pessoal na vida doméstica foi popularizado e romantizado não só pela cultura da época, como pela ciência –principalmente a medicina. O resultado foi um surto de histeria na Europa e de uma série de enfermidades físicas e mentais entre as mulheres daquele período, profundamente adoecidas pela frustração de não se adequarem a esse papel.

Na internet, todo mundo pode ser (ou melhor, parecer) o que quiser. O discurso das “trad wives” se baseia não em uma escolha individual, e sim na propaganda da submissão como um caminho de libertação para todas as mulheres. Não porque essas influenciadoras sejam ingênuas ou perversas, mas porque sabem que isso gera muito mais engajamento (tanto do público conservador quanto do feminista) do que seus vídeos fazendo pão artesanal.

Fui criada por uma esposa tradicional e testemunhei, de muito perto, a rotina acachapante que levou minha mãe à depressão e que em nada se parece com o mundo cor-de-rosa falseado pelas “trad wives”.

Em 2024, já deveríamos saber que não se deve acreditar na “vida perfeita” postada pelos outros.

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