domingo, outubro 6, 2024
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35 anos de ombudsman (e quem semeia a dúvida é você)

No último dia 24, a existência de um ombudsmanato na Folha completou 35 anos. Aos 43, o do Washington Post foi extinto. O do New York Times morreu bem mais jovem e não chegou a completar 14 anos de atividade. O do El País, por outro lado, parece são e salvo ao beirar os 40.

Como titular do cargo ainda há poucos meses, peço licença para usar a primeira pessoa neste texto e deixar a chapa quente para a próxima semana.

Recorri ao pioneiro da função, Caio Túlio Costa, para colher algumas impressões sobre esse aniversário. Em seu “O Relógio de Pascal” (1991), Caio Túlio, aliás, dá as características essenciais para ser ombudsman: ingenuidade (para aceitar a bucha) e paciência, muita paciência. Elas continuam bem válidas.

Mas o que seria preciso daqui por diante, nesta realidade em que a função fica meio perdida entre os comentários, a profusão de manifestações via redes sociais e a proliferação de críticas por todos os lados? “Captar a consciência digital coletiva” é a resposta de Caio Túlio. “Tem que ter instrumental digital de ponta capaz de dar ao jornal o que é essa consciência digital coletiva, quais são os atores dela.”

“Abraçar as redes sociais, ou seja, abraçar o demônio”, resume.

A interação fica cada vez mais veloz e muitas vezes alheia ao próprio jornal. A ideia de mediar o ponto de vista do leitor parece um pouco gasta. Com frequência, é preciso buscar esses pontos de vista exteriores muito mais do que esperá-los chegar.

“Creio que o ombudsman deve promover a dúvida, não corroborar certezas” é o ensinamento de Carlos Eduardo Lins da Silva, um dos arquitetos dessa função na Folha, que a exerceu de 2008 a 2010. Isso vale especialmente na porção do trabalho que é feita internamente, com duas críticas diárias ao conteúdo do jornal que circulam para a Redação.

Paralelamente, uma mensagem recebida enquanto eu trabalhava neste texto me chamou a atenção. Vinha com o título “500 ml de bile”, e foi assim que um assinante depositou seu meio litro de secreção no email ombudsman@grupofolha.com.br.

“A Folha continua sendo o farol da classe média esclarecida que vê o restante do Brasil como um mar de ignorância e trevas que deverá ser civilizado à força. É isso que vocês não entendem. O Marçal não é antissistema, o Bolsonaro não é antidemocrático… Eles são o subproduto da extensão da democracia a rincões em que ela antes nunca havia chegado. (…) Já podem encaminhar o meu comentário para a lixeira, porque, diferente da Folha, nem pra segurar o mijo do meu cachorro ele serve.”

As feições expressionistas do comentário bilioso traduzem algo do que se espera do ombudsman: absorver algo da frustração de quem consome informação. Encaminhar as queixas para onde possam ser resolvidas. Explicar quando não podem. Propor ao jornal (propor, não impor) correções objetivas ou de rumos.

Já a palavra, “ombudsman”, esta era e continua feia. Até pretensiosa. Chegam a esta ombudsman questionamentos sobre a correção do termo para uma mulher.

O certo seria “ombudskvinna”, dizem alguns missivistas e comentaristas, o que só pioraria o hermetismo do termo. Não falo sueco, mas até onde consegui entender o termo “ombudsman” é neutro quanto ao gênero. Anglófonos passaram a admitir “ombudswoman” e “ombudsperson”, numa tentativa de neutralizar o “-man”. Em português brasileiro, “representante do leitor” parece insuficiente e presunçoso; o El País mantém “defensora del lector”; no Le Monde, há um diretor de relação com os leitores. Talvez esse seja um caminho, mas ele é desenhado de modo diferente.

O cuidado com a voz do leitor, na Folha, é bifurcado. O consumidor de informações tem espaço, via Redação, nos comentários, no Painel do Leitor e em canais de redes sociais e aplicativos de mensagens. Já a ouvidoria oficial, ombudsman, tem como missão levar alguns desses comentários para dentro da feitura do produto jornalístico, mas não tem autoridade sobre ele. (A já longa briga dos comentaristas com a moderação vai ser tratada oportunamente, peço calma…)

No sentido contrário, desfazer equívocos de interpretação também acaba na conta dessa função. Com o aumento da hostilidade contra a mídia na última década, o papel de xerife do consumidor precisa às vezes dividir espaço com o de toureiro dessa raiva difusa. Faz parte.


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