'A Substância' fala sobre o envelhecimento sem cair na mesmice
“Você já sonhou com uma versão melhor de si mesmo?”. Essa é a grande pergunta do “A Substância”, um filme ousado e inteligente escrito e dirigido por Coralie Fargeat, que fez absoluta questão de não poupar o espectador.
O assunto não é novo, mas é pungente: até onde as mulheres são capazes de ir para vencer o embate juventude-envelhecimento? Fargeat não traz respostas, mas usa uma dose de perversão para nos perturbar com a pergunta, sem cair na mesmice do discurso contra o etarismo e o machismo. Acaba sendo mais eficaz, porque coloca o dedo direto na ferida.
O filme vai fundo, invade as vísceras, as entranhas, literalmente, deixando os filmes de David Cronenberg parecerem Sessão da Tarde.
A cena de abertura nos antecipa a história: uma gema de ovo vai lentamente perdendo a sua forma. Um líquido esverdeado é injetado através de uma seringa, fazendo nascer de dentro dela uma gema firme, que seria uma “nova versão”, mais enxuta, da gema “envelhecida”.
A protagonista Elisabeth Sparkle (Demi Moore) vive essa gema envelhecida no filme, quando vê a sua carreira se desmoronar junto com o seu colágeno aos 50 anos. Apresentadora de um programa fitness estilo Jane Fonda, sua estrela na Calçada da Fama é esquecida e pisoteada sem cerimônias pelos transeuntes.
Com essas duas primeiras cenas, sem nenhuma palavra Fargeat diz com todas as letras: o valor dado à mulher é proporcionalmente inverso à sua idade. A sutileza do filme acaba aí.
Elisabeth está cercada por lembretes de sua idade e do desbotamento da sua relevância. Atenção para o spoiler. Para piorar, ela é dispensada do seu programa por decisão do executivo da emissora, não por acaso chamado Harvey (Dennis Quaid), que pretende substituí-la por uma “carne fresca”.
A cena é de dar nojo: enquanto dá a má notícia para Elisabeth, Harvey devora camarões avidamente com os lábios gordurosos, cospe suas cascas em uma tigela e engole a parte carnuda. A metáfora é clara. Cada estalo da mastigação é registrado, deixando a cena mais repugnante.
A técnica de som usada no filme e a proximidade da câmera (que às vezes funciona como um olhar masculino) amplificam a narrativa e os efeitos especiais, que chegam ao limite do desconforto e revelam o quão bonito um filme com cenas tão repulsivas pode ser.
Elisabeth é vítima de um carrasco real (Harvey) e de outro imaginário (o medo do envelhecimento). Isso a torna uma boa candidata para “A Substância”, uma droga misteriosa e experimental injetável (Botox? Ozempic? Ácidos milagrosos?), que promete devolver anos de vida. Elisabeth morde a isca e nunca mais escapa dela.
Ela consegue o que quer: um corpo jovem e perfeito, que surge na pele de Sue (Margaret Qualley). Mas Elisabeth se torna vítima de si mesma e acaba perdendo tudo o que restava da sua beleza. Apesar de serem uma só, Elisabeth e Sue, entram em guerra, mergulhadas na obsessão pela juventude e fama.
A busca pela juventude tem o seu preço. Por mais que se tente driblar os efeitos do tempo, uma hora ele chega, implacável, para nos dizer: você não tem mais para onde fugir. Estamos vivendo mais e melhor, a mesma senhorinha com 60 anos de ontem pode ser, hoje, uma triatleta. O problema é que não aprendemos a envelhecer. O embate interno entre as nossas Sue e Elisabeth impedem que elas se aceitem e aprendam uma da outra. Se soubéssemos como mediar esse conflito não perderíamos tanto tempo procurando a nossa “melhor versão”.
Durante os 160 minutos do filme (passam rápido) somos conduzidos à loucura da psique de Elisabeth/Sue, e acabamos nos deparando com os nossos próprios monstros do inconsciente.
Depois de tantas cenas de horror e de ficção, concluímos que, por mais assustadores que pareçam, os monstros de “A Substância” são incrivelmente reais.
Obs: Os spoilers não refletem a grandeza do filme. Confira com os seus próprios olhos, mas prepare o estômago.
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