Como Jean Brodie, Maggie Smith ofereceu alegoria notável sobre o fascismo
Uma das coisas mais tristes da vida cultural moderna é essa tendência para reduzir a carreira de um grande ator morto aos últimos três ou quatro filmes populares que fez.
Com honrosas exceções, aconteceu agora com a grande Maggie Smith. Para o gosto médio, a atriz inglesa ficará para sempre como a professora Minerva McGonagall, de “Harry Potter”, e a viperina Lady Crawley, de “Downton Abbey”. E o resto? Arqueologia.
Sim, mil vezes sim: gostei e aplaudi essas encarnações maduras de Smith. A sua Lady Crawley, aliás, ficará na memória dos cinéfilos pela pergunta desarmante: “O que é um fim de semana?”. Ah, a doçura da vida de que falava Tayllerand sobre o mundo pré-revolucionário das elites…
Que essa personagem aristocrática tenha encantado tantas plateias, eis a prova de que não há nada mais fascinante do que um reacionário da velha escola.
Gostei e aplaudi, repito. Mas se tivesse de escolher o Everest da sua carreira, ele estaria lá atrás, aos 35 anos, quando Maggie Smith deu corpo e voz à personagem que Muriel Spark criou no romance “A Primavera da srta. Jean Brodie“.
Se você não assistiu a esse, você não assistiu a nada.
O filme —no Brasil intitulado “A Primavera de uma Solteirona“— valeu a Smith o único Oscar da sua carreira; e a história pode ser contada de duas formas.
A primeira oferece-nos Jean Brodie, professora de um colégio de meninas na Edimburgo de 1932. Ela é excêntrica, romântica, sexualmente progressista e uma inspiração para as suas alunas, que veem nela um modelo a seguir.
A professora devolve o afeto e brinda as meninas mais promissoras com visitas a museus, piqueniques à sombra de castelos e palavras de encorajamento sobre carreiras futuras. São as suas “Brodie girls” —uma pequena corte onde Brodie reina, luminosa.
Ou, nas suas palavras: “Deem-me uma moça numa idade impressionável e ela é minha para toda a vida. A crème de la crème”.
Com a sua visão estética da vida, que ela coloca muito acima da moralidade comum, Brodie contrasta com o colégio conservador que olha para ela com crescente inquietude.
Contado assim, até parece um “Sociedade dos Poetas Mortos” no feminino, certo?
Errado. “A Primavera de uma Solteirona” é uma das mais notáveis alegorias sobre a natureza do fascismo que me lembro de ver no cinema (“Clube da Luta”, de David Fincher, é outra; mas divago).
Fascismo. Haverá palavra mais degradada na linguagem contemporânea? O que é o fascismo?
Pode ser tudo e o seu contrário. O liberalismo é fascismo. O neoliberalismo é fascismo. O conservadorismo é fascismo. Para ficar apenas nessas três, vale a pena lembrar que o fascismo é uma ideologia antiliberal, corporativista e, na sua vocação revolucionária e utópica, anticonservadora também?
Vale a pena lembrar que um Estado de partido único, com uma ideologia oficial que é martelada dia e noite pela propaganda oficial e que exerce violência e terror sobre os seus cidadãos, é o contrário da democracia pluralista, da livre concorrência e do respeito pelas tradições benignas de uma comunidade?
No tempo em que as palavras não eram jogadas ao vento, o fascismo transportava aquele imperativo que Mussolini descreveu em 1925: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.
Nesse totalitarismo, o indivíduo é nada, o Estado é tudo –e, sendo tudo, ele regula e controla todos os aspectos da vida pública e privada.
É assim que devemos olhar para a Jean Brodie de Maggie Smith. Não apenas porque ela tem uma admiração explícita, e partilhada em aula, por “Il Duce” e seus “Fasci di Combattimento”.
Mas porque a sua frase “deem-me uma moça numa idade impressionável e ela é minha para toda a vida” deve ser interpretada de outra forma.
Superficialmente, Jean Brodie é uma inspiração. Superficialmente, é uma professora carismática. Mas Mussolini ou Hitler também o foram para milhões de alienados, que os seguiram até ao abismo.
O programa de Brodie para as suas alunas não é despertar nelas uma personalidade forte, autônoma, livre. É moldar os seus espíritos para que cumpram a função que ela determina.
Se isso envolver o martírio em nome da Causa (com maiúscula), saberão pelo menos que morreram como heroínas —a mentira típica do líder totalitário.
“A Primavera da srta. Jean Brodie” é um estudo meticuloso sobre a existência e a permanência dessas figuras messiânicas que atraem seguidores fracos e acéfalos.
Mas é também o retrato do que acontece quando um desses asseclas recupera a sua individualidade, pensando pela própria cabeça e derrubando o falso ídolo.
Mais cedo ou mais tarde, é o que acontece. Mussolini acabou pendurado de cabeça para baixo numa praça de Milão. Hitler não conheceu melhor destino no seu bunker de Berlim.
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