sábado, outubro 5, 2024
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As confissões de um menino preto que segue os ensinamentos aprendidos dos ancestrais

Muitas pessoas perguntam, nas palestras e participações que faço em festas e eventos literários, como a literatura entrou em minha vida. Eu encaro tais perguntas por dois vieses: 1º) de pessoas que carregam em si a sutil curiosidade pela vida alheia, em parte desconhecida; 2º) de pessoas que trazem, no âmago, certo ar de ceticismo, de irremediável incredulidade, do que o outro acaso representa, como a se pensar: como assim?

Eu não sou um jabuti na árvore da literatura; ninguém me botou nela, sou oriundo de uma família pobre e numerosa, que desconhece o que é mérito, ou os privilégios dos que agora, de arquibancada, indagam e perguntam como cheguei na vida literária, de onde não pretendo sair tão cedo.

A literatura entrou na minha vida na adolescência. Por volta dos 12 para 13 anos, me deparei com uma considerável quantidade de livros deixados pelo meu pai, Enes de Oliveira Alves —e, “deixada”, vale frisar, porque meu pai faleceu no ano de 1969, data em que eu tinha nove anos de idade.

Meu pai era um homem negro, servidor público, tipo austero apenas na aparência, vestia ternos escuros, não era alto nem baixo, cativava espesso bigode que lhe dava ares de intelectual finissecular, à moda do século 19. Passado a limpo os tempos, encaro nele certa semelhança, talvez perfil próximo à imagem do poeta Cruz e Sousa.

Na nossa casa do bairro de Realengo, confins do subúrbio carioca, certo dia encontrei algumas caixas de livros de capa dura, de autores hoje considerados clássicos da literatura brasileira. Não sei como estes livros foram parar ali, num canto obscuro da casa —nem como sobreviveram às bruscas mudanças de residência que precisamos atravessar. Estavam lá —vejo tudo como um velho filme agora, passadas tantas décadas— as coleções das obras completas de Machado de Assis, coleção de capa verde, publicada pela formosa W. M. Jackson Inc. Editores, com data de 1955 e outra edição também caprichosa, igualmente completa, de Lima Barreto, publicada pela Brasiliense, sob a competente coordenação de Francisco de Assis Barbosa, primeiro biógrafo do autor de “Clara dos Anjos”, coadjuvado pelos mestres Antônio Houaiss, que foi meu mestre também, e M. Cavalcanti Proença.

Entre os 31 volumes das obras do Machado e os dezessete do Lima, eu já possuía uma considerável biblioteca para leitura. A estes, acrescentam-se dezenas de livros didáticos, enciclopédias e dicionários diversos, livros de matemática, gramática e física, incluindo outros ícones de nossa literatura clássica, como Aluísio Azevedo, Raul Pompeia, Augusto dos Anjos, Jorge Amado, Dinah Silveira de Queiroz – além dos portugueses Eça de Queiroz e Luís de Camões, Camilo Castelo Branco e Antônio Nobre. Hoje esse acervo se ampliou, acrescido de obras raras.

Conservo muitos desses livros ainda comigo, como relíquias —e seguem, em minha companhia para o destino que eu tomar, como parte do espólio que deixarei um dia, assim feito meu pai, para meus filhos e netos.

Nessa quadra de minha vida, os livros que mais impactaram minhas leituras foram “O Ateneu”, de Pompeia; “Floradas na Serra”, de Dinah, conservo a primeira edição, de 1939; e “Eu e outras poesias”, de Augusto dos Anjos, poeta paraibano que se transformou na minha obsessão, em versos guardados na memória, o mesmo com Camões, Gregório de Matos, e outros.

Talvez para suprir a ausência paterna, ou por algum fator psicológico de que até hoje não tenha me dado conta totalmente, adentrei o mundo desses livros, como alguém em busca de ancoradouro seguro, suporte das viagens imaginárias de menino imaturo, órgão cedo da figura paterna.

Nesta fase da vida, de jovem voltado para os estudos e pouco afeito às estripulias infantojuvenis, tão comuns nessa idade, restava-se conviver, na humilde casa de minha mãe Flora, sempre cheia de gente, com os mais velhos da família, sobretudo as mulheres, velhice, a contar meu avô Modesto, de 112 anos, era fonte de sabedoria e aprendizado, isso nos idos dos anos 1970.

As histórias dos mais velhos, cheias de superstições e ancestralidade (meu avô tinha nascido antes da Lei do Ventre Livre, que é de 1871), carregavam o ranço das marcas da violência colonial, ao tempo de país escravista e senhorial, onde negros e negras tinham seu “dono” e senhor.

Filho mais velho de família numerosa e cheia de irmãos, eu vivi à sombra de muitas pessoas, que me acolheram e educaram, oficialmente na base da bênção aos parentes e o respeito, bons resquícios de uma comunidade africana do passado.

Eis aí um pouco das confissões de um menino preto que se orgulha dizer de onde veio e pertence —e que traz, na insígnia da vida, em boa conta, os ensinamentos repassados por seus mais velhos, seguindo com eles, certamente, para o restante da vida.

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