domingo, outubro 6, 2024
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Harari se perde em especulações sobre futuro nada radiante da IA

O historiador e autor de best-sellers internacionais Yuval Noah Harari defende em seu novo livro, “Nexus”, que informação e verdade não são a mesma coisa. Embora pareça óbvia, a afirmação não corresponde ao entendimento do público. Nossa tendência é tomar uma coisa pela outra, o que explicaria o efeito contagioso das fake news. O livro é um alerta enfático contra o vale-tudo das redes às vésperas da revolução da inteligência artificial.

“Nexus” se propõe a fazer a genealogia admonitória das redes de informação desde a pré-história até a inteligência artificial, passando pela Bíblia, pelas guerras de religião e pelo advento da democracia e dos totalitarismos na modernidade. A promessa se sustenta até se perder em especulações reiteradas à exaustão sobre o que nos reserva o futuro nada radiante da IA. É como Cassandra pregando para surdos.

É claro que a informação muitas vezes leva à verdade, mas ela costuma ser mais palatável quando também produz algum tipo de ordem. Não é possível abrir mão da ordem social em nome da verdade, por exemplo. E as duas nem sempre combinam. Daí o conforto da ilusão, e da confusão entre uma e outra.

O problema potencial da IA é a criação de uma rede de informação absoluta e inquestionável. A solução, como nos mostra a história, seria a instauração simultânea e urgente de um sistema de contrapesos formado por instituições transparentes e falíveis, mas sempre prontas a prestar contas umas às outras e ao cidadão, que relativizassem e regulassem o poder das redes de informação como transmissoras da verdade, sem abrir mão da ordem, à imagem das democracias e da ciência moderna.

Harari trata diversas redes de informação ao longo da história como produtoras de ficção, narrativas ordenadoras e normativas, como a Bíblia, as identidades nacionais e os racismos. Aí mora o perigo de uma rede de informação autointerpretativa e inquestionável como a IA, com o poder de estabelecer, por meio de um pensamento e de uma lógica inacessíveis, uma ordem ficcional absoluta travestida de verdade.

Em oposição a esse sentido negativo e ilusório, o modelo de ficção exaltado por Harari no livro é um episódio da série “Black Mirror”. A boa ficção, para ele, seria a representação especular, parábola ilustrativa, advertência sobre os riscos que corremos. Aí estaria a contribuição especulativa da arte para a verdade. Há, porém, outra dimensão positiva da ficção, que parece escapar ao escopo do livro.

A ficção é o discurso que se desdiz e se desconstrói por definição. Assim como a arte, ela é um exercício de verdade em si, independente da informação. A verdade nela já não é referencial; é a própria criação. E por isso talvez ela já não faça sentido para muita gente num mundo dominado por redes de informação, porque foi reduzida à utilidade de instrumento de reconhecimento e confirmação, conquista de mercado e motivação social.

Ao contrário das redes nas quais ela se confunde com a verdade, como na Bíblia ou nas fake news, a ficção assumida como tal traz o sistema de contrapesos embutido na própria porosidade de um discurso falível e questionável, que pode tomar formas polifônicas, contraditórias e paradoxais. A ficção é, por natureza, duplo e duplicidade, afirmação e negação simultâneas, diálogo e reflexão. É a sua verdade.

Quando a escritora argentina Ariana Harwicz disse recentemente, num encontro em São Paulo, sentir-se chantageada pela autoficção, como leitora, era disso que ela estava falando. De uma ficção que quer passar por verdade referencial, confundindo informação e verdade, e que por isso depende antes de mais nada da crença na expressão da identidade do autor para poder existir como prova, documento.

Tomando o modelo da palavra divina, essa “ficção absoluta” é um oximoro que não admite questionamento. Nela, ou a dúvida é banida como imoral ou é ignorada como fraqueza.


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