domingo, outubro 6, 2024
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Preconceito de colegas silenciou meu interesse por Hannah Arendt

Sempre que inicio um novo projeto de pesquisa, procuro reorganizar a minha biblioteca dando destaque aos livros que serão mais importantes ao longo do meu trabalho. Desta vez, estou me preparando para escrever sobre Hannah Arendt. Assim, fui de estante em estante procurando algumas das suas obras e acabei me surpreendendo ao constatar que tenho muito mais livros de Arendt e sobre o seu pensamento do que poderia imaginar.

Tamanho foi o meu susto que resolvi empilhar os livros que encontrei e tirar uma foto, como se estivesse diante de algo que exigia explicações. Afinal, não era possível que, apesar de toda essa leitura, a obra de Arendt ainda não tivesse desempenhado um papel de maior relevância na minha atividade acadêmica.

Dias depois, examinando a imagem feita por mim e que também acabei compartilhando com os amigos a fazer troça das minhas obsessões de leitora, decidi refletir mais seriamente sobre o motivo pelo qual levei tanto tempo para finalmente transformar Arendt em objeto das minhas pesquisas.

Arendt é uma autora que me acompanha desde o final da graduação, quando viajei para Israel pela primeira vez, em 2008, e tive a oportunidade de frequentar os inúmeros sebos de Tel Aviv em busca de títulos em língua estrangeira que, na época, não eram fáceis de se encontrar no Recife.

No final da minha viagem, trouxe comigo uma cópia de “A Condição Humana” (1958), mas não encontrei com quem discutir o livro, pois a maioria dos meus colegas de faculdade parecia ter algum problema com a autora e, aos poucos, diante da resistência, resolvi silenciar com relação às minhas leituras.

Esse movimento acabou fazendo com que o meu interesse pela obra de Arendt se tornasse algo privado, ao exemplo da relação que mantemos com os nossos ídolos de adolescência; como se tudo que eu pudesse obter dos seus livros fossem reflexões a partir das quais eu também me sentisse capaz de questionar as minhas experiências de mundo.

Neste sentido, Arendt foi fundamental durante os meus primeiros anos fora do Brasil, quando, ao perceber que havia caído de paraquedas no Oriente Médio, precisei reconsiderar a minha trajetória e a maneira como articulava a minha identidade judaica.

Somente mais tarde, durante o meu doutorado, quando já estava escrevendo para a Folha, encontrei pessoas dispostas a manter um diálogo mais aprofundado sobre algumas das suas ideias.

Através dos meus textos publicados no jornal, fiz amizade com duas pesquisadoras brasileiras, Ludmila Franca-Lipke e Adriana Novaes, que passaram a estimular ainda mais a minha curiosidade sobre a autora.

Igualmente, contei com o apoio de uma das professoras do Departamento de Alemão aqui da universidade e juntas decidimos trabalhar em uma disciplina na qual abordávamos questões relacionadas à história do pensamento alemão a partir da contribuição de autores judeus. Arendt, obviamente, figurava entre os autores cujas obras iríamos tratar em sala de aula.

De lá para cá, muito mais coisas aconteceram. Por exemplo, neste verão em que estive na Alemanha, apresentei os primeiros resultados da minha pesquisa de pós-doutorado sobre Arendt. No entanto, gostaria de deixar aqui uma reflexão sobre a importância do diálogo na convivência acadêmica. Pois, se a reação inicial ao meu interesse na autora houvesse sido minimamente positiva, talvez a minha relação profissional com a sua obra tivesse se iniciado há muito mais tempo.

Hoje, portanto, tomo muito cuidado quando oriento os meus alunos de graduação nos seus trabalhos de conclusão de curso. Tento fazer com que eles se sintam à vontade com o que desejam pesquisar. Evito importuná-los com os meus preconceitos acadêmicos e, com isso, também aprendo coisas novas. Pois, sempre que um deles me explica por que se sentem tão entusiasmado pela obra de determinado autor, percebo-me, de alguma maneira, intimada a remediar as lacunas da minha própria formação.


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