Liberdade para cuidar da própria saúde
A correta decisão do Supremo Tribunal Federal que autoriza pacientes a recusarem tratamento médico por motivos religiosos —como se dá com fiéis da religião Testemunhas de Jeová que se opõem à transfusão de sangue— constitui um raro avanço recente em direitos individuais no Brasil.
Conforme o entendimento unânime dos magistrados, o tratamento pode ser rejeitado somente em caso de adultos cognitivamente capazes e informados sobre os riscos envolvidos. A medida é oriunda do julgamento de dois recursos extraordinários com repercussão geral.
Num deles, a Santa Casa de Maceió negou uma cirurgia porque a paciente não quis assinar o termo de consentimento para transfusão de sangue, caso houvesse necessidade. No outro, a União recorreu de decisão que a obrigou a custear cirurgia fora do estado de domicílio do paciente porque, no de origem, não era ofertado procedimento sem transfusão.
O Supremo definiu que o Estado deve arcar com tratamentos alternativos disponíveis no sistema público de saúde, desde que respaldados pela ciência e com anuência da equipe médica, mesmo que seja preciso transferir o paciente para outro local.
Outro aspecto fundamental é a proteção dos menores de idade, que não são alcançados pela liberalidade do Supremo.
Num exemplo, a Justiça da Bahia autorizou em maio a transfusão de sangue em um bebê recém-nascido. O promotor argumentou, de modo sensato, que o direito à vida se sobrepõe à liberdade religiosa quando se trata de crianças —e que nem mesmo é possível saber se o filho seguirá a religião quando for adulto.
Apesar de a medida do Supremo estar correta em seu mérito, ainda existem questões práticas a serem contempladas, como casos de pessoas inconscientes em situações de emergência.
Países diversos permitem a objeção, por motivos religiosos ou de consciência, a tratamentos de saúde, com a ressalva para os mais jovens. Outra exceção importante diz respeito a situações em que a decisão acarreta riscos a terceiros e à coletividade, como em doenças contagiosas e em campanhas de vacinação.
O mesmo princípio liberal de defesa da autonomia do indivíduo sobre seu corpo, observado na decisão do Supremo Tribunal Federal, deveria pautar leis sobre drogas leves e eutanásia, como defende esta Folha —sempre, é claro, com regulação rigorosa e ampla informação.
O Estado extrapola seu papel quando se arvora a tutelar ações da esfera estritamente individual.