terça-feira, outubro 8, 2024
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Entre a esperança e o abismo


Por quase um ano, o mundo tem testemunhado o genocídio na Faixa de Gaza, com cenas diárias de crianças mortas, supostas “áreas seguras” transformadas em cemitérios e famílias separadas. Apesar dos apelos à paz, as principais potências ocidentais apoiam o desafio de Israel contra a resolução da Assembleia Geral da ONU e as decisões da Corte Internacional de Justiça (CIJ) para acabar com a ocupação ilegal dos territórios palestinos e permitir a entrada irrestrita de ajuda humanitária em Gaza. Esta não é uma crise humanitária, é uma crise de humanidade.

Juntamente a outros especialistas da ONU, tenho solicitado repetidamente um embargo de armas, pedindo aos Estados que cessem todo o comércio de segurança militar com Israel e imponham sanções abrangentes. O Conselho de Direitos Humanos faz eco a essa demanda, enfatizando o dever dos Estados, de acordo com a Convenção sobre Genocídio, de prevenir e interromper as violações do direito internacional. Esses apelos não foram atendidos, e o direito internacional está se tornando cada vez mais irrelevante. O Norte Global está dividido e é incapaz de deter o genocídio. Neste momento, a liderança do Brasil, como um dos países mais influentes do Sul Global, é fundamental para defender o direito internacional em sua forma atual.

Mesmo antes do parecer consultivo da CIJ de 19 de julho de 2024, que declara a ocupação israelense como ilegal, equivalente à anexação e que, portanto, precisa ser desmantelada, a corte internacional exigiu que os Estados se abstivessem de ajudar a ocupação ilegal de Israel; em 2004, a CIJ já havia lembrado os Estados de sua obrigação de ajudar a concretizar o direito à autodeterminação do povo palestino e de tomar medidas para acabar com essas violações. O deslocamento forçado, persistente, generalizado e sistemático dos palestinos do que restou de sua terra natal por parte de Israel viola esse direito inalienável de existir como um povo no território ao qual pertence, juntamente com outras disposições fundamentais do direito internacional, adequando-se às descrições de apartheid de vários órgãos de direitos humanos.

A impunidade sem restrições de que Israel desfruta, protegida pelos padrões duplos de alguns Estados, prejudica o respeito global pelo direito internacional. É imperativo acabar com essa impunidade, não apenas para os palestinos, mas também para os israelenses —que atualmente estão muito feridos, traumatizados ou polarizados demais para enxergar uma alternativa à guerra permanente— e para a humanidade. Para as nações com histórias coloniais, elas deveriam reconhecer esses padrões genocidas e pressionar por medidas efetivas além da condenação simbólica.

O governo brasileiro tem demonstrado, desde o início do ataque israelense a Gaza, uma notável firmeza diplomática e política em sua condenação das ações israelenses. Os representantes do país têm demonstrado um compromisso significativo com a defesa do direito internacional. O próprio presidente Lula denunciou, de forma rápida e notável, o genocídio em Gaza. Em seu recente discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente afirmou que as ações israelenses representam uma forma de “punição coletiva” para todos os palestinos. Também ocorreram a condenação do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, à inação do Conselho de Segurança da ONU e a convocação do embaixador brasileiro em Tel Aviv.

Além disso, o Brasil tem apoiado de forma aberta e significativa o trabalho dos órgãos judiciais da ONU, dando apoio político ao caso da África do Sul na CIJ e participando construtivamente do processo que levou ao parecer consultivo da CIJ de julho de 2024.

Em menos de um ano, 42 mil palestinos foram mortos somente em Gaza e dezenas de milhares foram mutilados, muitos deles para sempre. O dano intergeracional é incalculável. Sem controle, a violência também se espalhou pela Cisjordânia, onde os ataques militares e a violência dos colonos mataram quase 700 pessoas, deslocaram milhares e causaram muita destruição. O apagamento do povo palestino, todos sobreviventes da Nakba, continua.

A pressão diplomática e política é necessária, mas claramente não é suficiente. O Brasil tem defendido louvavelmente o direito internacional por diferentes meios, e agora é urgente que também reveja seus laços econômicos com Israel, especialmente no setor de segurança militar. Esses, juntamente com suas relações comerciais contínuas com Israel em armas e petróleo bruto, contrastam fortemente com essas ações. Em última análise, isso sustenta as violações israelenses. O recente acordo de R$ 1 bilhão com a Elbit Systems e a exportação significativa de petróleo bruto para apoiar os esforços militares de Israel são, por si só, uma violação das obrigações internacionais. O Brasil tem o potencial de liderar pelo exemplo, cessando todas as relações que permitem as violações israelenses da lei internacional contra os palestinos, inclusive as econômicas.

E o momento de fazer isso é agora. O genocídio e o apartheid são questões urgentes do direito internacional, mas também são problemas de um sistema causado por desigualdades estruturais e, muitas vezes, pelo racismo. Isso exige ação global. Como o Brasil demonstrou, a lei internacional não é teórica; ela exige a aplicação por meio dos atos das nações e das nações capazes de cumprir esse compromisso.

TENDÊNCIAS / DEBATES

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