terça-feira, outubro 8, 2024
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Não caia na cilada do 'já que'

Tudo começou com um furinho na parede que sustentava um quadro. Depois de dez anos no corredor, a tela já não combinava com o nosso momento. Resolvemos dar um tempo —do quadro. Tirei a tela, arranquei o preguinho com um alicate e tentei disfarçar o furo com pasta de dente, receita da minha avó. Depois de secar, usei uma lixa de unha para deixar a emenda plana. Ficou quase perfeito. Mas o perfeito quando é quase, chama mais atenção do que o imperfeito assumido.

Chamamos um faz-tudo para dar uma pintadinha rápida, coisa simples. “Então, dona, mesmo que o corredor é branco, vai destoar a cor. Melhor pintar a parede toda”. Já que vamos pintar mesmo, não custa pintar a parede toda.

Antes de sair, ele olha para baixo, fez um ligeiro não de reprovação. Pergunto se estava tudo bem. “Eu não ia falar nada não, mas já que a senhora perguntou. Já que vamos deixar a parede novinha, a gente podia aproveitar pra dar um jeito nesse rodapé”. Como é que eu nunca tinha reparado naquele rodapé batido e desgastado? A vontade foi de deixar pra lá, mas não ia dar certo, o estrago já tinha sido revelado. Toda vez que eu passasse pelo corredor meu olhar seria imediatamente abduzido para o rodapé estropiado. É assim que funciona, ou a gente se acostuma e passa reto pelos defeitos, ou só tem olhos para. Tá bem, vamos pintar o rodapé, já que estamos com a mão na massa.

“Só pintar não vai resolver, patroa, vai ter que trocar”. Trocar o rodapé? Achei que o faz-tudo fazia tudo sem complicar, assim como o martelinho de ouro faz com as batidas do meu carro. “Vai por mim, madame”.

Seguimos a rota do rodapé para calcular a compra do material e a trajetória nos levou à sala. “Não vai ter jeito”, coçou a cabeça, “vamos ter que trazer o novo rodapé até a sala”. Respondi não, obrigada, basta, já está suficiente. “A senhora é quem sabe, se não se incomodar com a emenda que vai ficar visível da sala, então tudo bem”. Anotei na listinha: rodapé da sala.

“A senhora não vai se arrepender, vai ficar lindo. Quer dizer, se não fosse o piso da sala, que está precisado de um belo polimento.” Realmente a madeira precisava de uma revigorada, mas há tempos empurrávamos com a barriga —o pó, as crianças alérgicas, os gastos e os dez dias na casa da sogra. “Se a patroa tá pensando em polir, faz isso antes do rodapé. E já que vamos polir o piso, pensa na pintura da sala, é a mesma tinta do corredor. Aproveita. Só que tem que pintar depois do rodapé e do piso para não ficar fuligem”. Entendi, então vamos cobrir o furinho do quadro, pintar a parede do corredor, trocar o rodapé do corredor, trocar o rodapé da sala, polir o piso de madeira e depois pintar a parede da sala toda. “E o teto, dona, não dá para se esquecer do teto”. Um furinho de nada, em 15 minutos, se transformou em um buraco negro e tornou minha casa inabitável.

O quadro, pivô do problema, estava lá, confortável, encostado na estante, só observando.

Na porta de casa, quase saindo, o faz-tudo se vira e dá o conselho derradeiro. “Agora, já que vocês vão ficar dez dias fora de casa, vale a pena arrumar esses armários da cozinha e, quem sabe, trocar o granito por porcelanato na cozinha, tá usando muito.”

Depois de sobreviver três meses na casa da sogra, estamos voltando pra casa, com um juramento: quadros na parede nunca mais.


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