quarta-feira, outubro 9, 2024
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Caso de cirurgia de endometriose gera questionamentos à Folha

“Sem autorização, médico opera coração de paciente em cirurgia para tratar endometriose.” A Folha estampou esse título do dia 26 de setembro, quando a reportagem foi publicada, até 2 de outubro. Havia algo sensacionalista na formulação, que gera espanto e revolta por parecer um daqueles casos em que o paciente entra com uma queixa e sai sem um membro que nada tem a ver com o problema.

Mas havia nuances e ao menos um erro. No dia 2, o jornal publicou uma correção (“Erramos”): “Versão anterior do texto afirmava que foi realizada cirurgia no coração da paciente. O procedimento foi feito no pericárdio”.

O pericárdio é uma membrana que envolve o coração, não o próprio órgão. Erros assim acontecem. É preciso que o jornal os reconheça e os corrija com celeridade, o que também aconteceu.

Havia, porém, assimetria no tratamento dos personagens. O nome do médico Ricardo Mendes Alves Pereira era exposto, enquanto “a paciente prefere preservar sua identidade e não falar publicamente sobre a denúncia”, dizia o jornal. A investigação corre em sigilo.

Segundo ginecologistas que operam endometriose, a detecção de focos da doença na região torácica pode ocorrer na cirurgia e nem sempre com a possibilidade de visualização nos exames. Uma conduta comum seria interromper o procedimento, encerrar a cirurgia e eventualmente marcar outra operação, com a presença de cirurgião torácico. Mas Pereira é conhecido, segundo colegas ouvidos pela ombudsman, por remover de modo minucioso esses focos.

A Folha até tentou contextualizar a situação. O problema é que o fez em outro texto, não no da acusação, sob o título “Só casos de urgência permitem que cirurgião mude o combinado com paciente, dizem especialistas”.

“Segundo o doutor e professor Maurício Simões Abrão, responsável pelo departamento de endometriose da USP, o médico deve explorar todos os locais onde possa haver sinais da doença e o especialista em endometriose tem autoridade para uma intervenção. Isso inclui áreas como o diafragma.” O texto da acusação prescinde dessas ressalvas e se fia na parte seguinte. “Apesar disso, Abrão afirma que o procedimento deve ser combinado antes”.

Para os advogados, houve “uma acusação seríssima sem a devida comprovação, ouvindo apenas o lado da paciente, que destrói a reputação de um profissional respeitado”. Eles alegam que o médico não poderia se defender, porque “se fizesse alguma declaração do conteúdo da investigação estaria violando o dever de sigilo”.

A reportagem não é de responsabilidade apenas de quem a assina —neste caso, uma repórter do primeiro time do jornal, Anna Virginia Balloussier, que escreve sobre religião, política, eleições e direitos humanos. O texto passa por edição, às vezes mais de uma vez, e pode ser submetido à Secretaria e à Direção de Redação. Reportagens com acusações e sem “outro lado” estão no rol de consulta obrigatória às instâncias superiores do jornal.

“Não me parece que houve erro em não expor a pessoa que acusa e que se diz vítima com sequelas de erro médico. Expor o nome do médico quando há investigações formais na Polícia Civil e no Cremesp tampouco parece equivocado”, afirma Vinicius Mota, secretário de Redação. O sigilo foi levado em consideração, afirma a SR, “mas isso não impede publicações de reportagens de interesse público. A reportagem tentou ouvir a defesa.”

“O caso foi fruto de apuração cautelosa, que identificou três frentes de investigação contra o médico (Polícia Civil, Cremesp e o hospital Albert Einstein) e deu espaço para a defesa se pronunciar —ela preferiu não, evocando o sigilo judicial. Lembrando que o jornalismo não tem impedimento técnico nem ético de abordar casos sob sigilo, desde que dê amplo espaço para o réu apresentar sua versão”, afirma Balloussier.

Quatro pacientes manifestaram à ombudsman apoio ao médico. “Não tenho elementos para julgar a autora da ação, mas possuo razões várias para chamar de irresponsável, enviesado e parcial o texto da Folha. É lamentável o julgamento prévio e o linchamento moral que decorrerão do tom irresponsável e sensacionalista”, diz Daniele Diniz, operada de endometriose por Pereira.

Não se trata de um caso simples, mas o cálculo a respeito de acusações dessa natureza é feito com frequência nas Redações. Há situações que pedem mais prudência, outras em que o risco se impõe. Nesta, a precocidade da exposição pode significar um erro de difícil correção.


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