quinta-feira, outubro 10, 2024
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Nosso sonho, nosso ideal, nosso futuro é ancestral

Em meados de 2021, convidei cerca de 50 indígenas de oito etnias para uma imersão criativa em um estúdio nas montanhas de Minas Gerais. Chegaram músicos, lideranças, homens, mulheres, caciques, pajés, guerreiros. Eu não sabia ao certo o que iria acontecer, mas sabia que aquele encontro precisava ser feito. Foram mais de 500 horas de criação musical, rituais de cura, encontros temperados por histórias e revelações com os povos huni kuin, kariri xocó, guarani mbyá, xakriabá, guarani kaiowá, kaingang, guarani nhandewa e yawanawa. Era uma imersão musical e também espiritual, ressoada pela sinfonia da natureza e pela ligação com o divino.

Desde 2015, quando pela primeira vez mergulhei na espiritualidade e nos cânticos de cura dos yawanawas (Acre), vivo profundas transformações pessoais a partir da conexão com a energia indígena. São verdadeiros renascimentos. Daquela vez, entretanto, o que estava em gestação era o álbum “O Futuro é Ancestral”, que não é meu individualmente, mas o resultado de um trabalho coletivo feito a muitas mãos, corações, jenipapo e urucum. Juntos, lançamos o álbum em 19 de abril —Dia dos Povos Indígenas— e fizemos um supershow em Brasília. Cinco meses depois, há poucas semanas, recebi a notícia de que uma de suas faixas foi indicada ao Grammy Latino. “Pedju Kunumigwe”, dos guarani nhandewa (Paraná), essa música que é um chamado às novas gerações para se reconectarem com a natureza.

A nomeação ao Grammy é para os povos originários do Brasil, assim como para mim, um fato histórico. É o que eles dizem: “Não queremos só a ancestralidade guardada, queremos cantá-la para o mundo”. A jornada que temos feito em apresentações na ONU, no Grammy Museum e que inclui o show que fizemos em 28 de setembro pela segunda vez no Global Citizen Festival (em 2021, na amazônia; em 2024, no Central Park) pretende imprimir uma presença mais significativa dos cantos indígenas —tradicionais e contemporâneos— no painel cultural internacional. Curiosamente, neste momento a música eletrônica também ganha reconhecimento e importância crescentes na indústria fonográfica. Eu não poderia estar mais feliz!

“O Futuro é Ancestral” é um movimento! A expressão vem sendo usada por muitos grupos e indica para a direção do que aprendi com Ailton Krenak: “Não teremos futuro sem o resgate das cosmovisões sustentáveis do passado”. Com o álbum, sinto que o meu papel é de plataforma a contribuir para que a música indígena encante mais corações e amplie consciências. Neste trabalho, cada faixa é um diálogo com a natureza ou um testemunho de dores e da resiliência dos povos, são músicas de celebração, cura e luta. São canções, mensagens e ritmos que vêm da terra, da floresta, do rio, do bicho e, sobretudo, dos sonhos, da espiritualidade sopradas pelos ancestrais e pelos ventos. Gravá-las é, ainda, uma contribuição à Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-32), em cooperação entre o Instituto Alok e a Unesco.

Meu mais profundo desejo é de que isso que estamos criando reverbere nesse movimento para uma nova consciência da necessidade urgente de reconexão com a natureza. Que contribua ao reconhecimento de que os povos originários não são apenas os guardiões da floresta, mas seus “jardineiros”, uma vez que a natureza que conhecemos foi moldada por civilizações antigas em sua interação com os biomas.

Embora representem uma pequena porcentagem da população mundial, cerca de 6%, os indígenas são responsáveis por aproximadamente 80% da preservação da biodiversidade da Terra. Não é à toa que a resistência dos povos originários aos movimentos de destruição e perseguição tem a força de um brotar e semear permanente.

Tashka Yawanawa diz que “a cultura não é estática, não é pedra que se pode quebrar”. Nossa música é como um encontro de rios: pororoca dos ritmos da ancestralidade com a contemporaneidade do pop, rap, hip hop e eletrônico. Nosso sonho, nosso ideal, nosso futuro é ancestral!

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